sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O Homem de Dois Milhões de Anos


A Universidade de Harvard convidou Jung para a sua Conferência Tricentenária sobre Artes e Ciências, em setembro de 1936, a fim de participar num simpósio sobre “Fatores Determinantes do Comportamento Humano”. ¹ Quando desembarcou em Nova Iorque, Jung tinha preparado uma nota para a imprensa, especialmente dedicada a expor sua posição política – ou, como ele insistia em afirmar, apolítica. ² Após deixar Nova Iorque, a fim de embarcar para a Inglaterra, foi entrevistado pelo New York Times, no Hotel Ambassador, e o artigo, intitulado “Roosevelt ‘Great’, Is Jung Analysis”, saiu na edição de domingo, 4 de outubro de 1936. O texto que se segue omite os comentários do jornalista, exceto as citações indiretas de Jung, apresentadas entre colchetes.

Antes de vir aqui, eu tinha a impressão que se poderia obter desde a Europa de que ele [Roosevelt] era um oportunista, talvez até uma mente variável, inconstante. Agora que o vi e ouvi, quando falou em Harvard, convenci-me, porém, de que é um homem forte, um homem realmente grande. Talvez seja por isso que muita gente não gosta dele.

[O Dr. Jung rendeu sua homenagem aos ditadores, explicando a ascensão deles como resultado do esforço dos povos para delegarem em alguém a tarefa complicada de administrar sua existência coletiva, de modo que os indivíduos possam ficar livres para se empenharem na “individuação”. Definiu este termo como o desenvolvimento por cada pessoa de seu próprio padrão inerente de existência.]

As pessoas têm-se mostrado perplexas com a guerra, com o que tem ocorrido na Rússia, Itália, Alemanha, Espanha. Essas coisas cortam-lhes o fôlego. Perguntam-se se vale a pena viver, porque perderam suas crenças, sua filosofia. Indagam-se se a civilização terá realmente feito qualquer progresso.

Eu chamaria progresso ao fato de, nos dois milhões de anos que existimos na Terra, termos desenvolvido um queixo e um tipo decente de cérebro. Historicamente, aquilo a que chamamos progresso é, no fim de contas, apenas uma rápida expansão do uso de carvão e petróleo. Quanto ao resto, não somos mais inteligentes do que os velhos gregos e romanos. Quanto às aflições atuais, é importante recordar simplesmente que a humanidade já passou por tais coisas mais de uma vez e deu provas de um grande sistema adaptativo, armazenado em nossa mente inconsciente.

[É a esse grande sistema adaptativo em cada indivíduo que ele se dirige, explicou Jung, quando um paciente o procura, derrotado em sua luta com os problemas de sua existência individual.]
Juntos, o paciente e eu voltamo-nos para o homem de dois milhões de anos que está em todos nós. Em última análise, a maioria de nossas dificuldades provém de perdermos o contato com os nossos instintos, com a antiquíssima e não esquecida sabedoria armazenada em todos nós.³

E onde estabelecemos contato com esse ancião em nós? Em nossos sonhos. Eles são as manifestações claras de nossa mente inconsciente. São o encontro da história racial e de nossos problemas externos correntes. Em nosso sono, consultamos o homem de dois milhões de anos que cada um de nós representa. Batemo-nos com ele em várias manifestações de fantasia. É por isso que peço a um paciente que escreva seus sonhos. Usualmente, apontam o caminho para ele como indivíduo.

[O Dr. Jung disse que sonhamos o tempo todo – é normal sonhar. Aqueles que dizem ter um sono sem sonhos, insiste ele, meramente esquecem o que sonharam imediatamente após despertarem. Em todas as línguas, sublinhou, existe um provérbio que alude àa sabedoria de se dormir sobre qualquer problema difícil... Mesmo quando despertos, concluiu o Dr. Jung, sonhamos; fantasias desenfreadas perpassam rapidamente pelos recessos mais fundos de nossas mentes e, ocasionalmente, chegam ao nosso conhecimento quando nossa atenção aos problemas externos imediatos é reduzida pela fadiga ou a divagação.]
Há a esperança de reparar um colapso sempre que um paciente tem sintomas neuróticos. Eles indicam que o paciente não está de acordo consigo mesmo e os próprios sintomas neuróticos diagnosticam usualmente o que está errado. Os que não tem sintomas neuróticos estão provavelmente fora do alcance da ajuda por quem quer que seja.

Notas:
1. Para a contribuição de Jung, “Psychological Factors Determining Human Behaviour”, ver CW 8, §§ 232 e ss.
2. Nenhuma publicação da nota para a imprensa foi localizada, mas o seu texto figura em CW 18, §§ 1300-1304.
3. Cf. “Uma Conversa Com Estudantes no Instituto” (1958), ver pp. 319 e ss.


Extraído de McGuire, W.; Hull, R. F. C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, s/d.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

A Importância Prática do Inesperado


David L. Hart

Há um princípio aqui ao qual sempre aderi e que poderia ser chamado de respeito pela importância do inesperado. É o princípio segundo o qual a vida em si possui significado que precisa ser considerado e a mente racional pode facilmente tentar controlar, passando a ditar significado e, em consequência, perdendo-o. Jung falava desse princípio em uma de nossas reuniões estudantis na sua casa quando um aluno mencionou um determinado estado psicológico, então perguntou: “Professor Jung, qual é a probabilidade estatística de esse estado ocorrer?” A resposta de Jung foi: “Bem, você sabe, assim que se começa a falar de estatística, joga-se a psicologia pela janela”.

O inesperado é aquilo que ganha uma chance de emergir no trabalho analítico quando um cliente vai à sessão sem nenhum “programa” e diz: “Não tenho absolutamente nada do que falar hoje”. No atual ponto de minha carreira, consigo alegrar-me em meu íntimo ao ouvir tal frase, mas antes ficaria muito ansioso. Alegro-me porque tenho certeza de que algo inesperadamente significativo tem, pelo menos, uma oportunidade de surgir. E é isso que, de uma forma ou de outra, costuma acontecer.

Assim, o processo de individuação poderia ser definido como uma vida vivida conscientemente, o que não é tão simples como parece. Não só as nossas mentes racionais, mas os hábitos de pensamento e ação também contribuem para a inconsciência geral em que a vida pode ser vivida. Para Jung,  ser inconsciente talvez fosse o maior dos males, e por inconsciente ele se referia a algo específico: ser inconsciente do próprio inconsciente. É nele que a consciência precisa focar; do contrário, ter-se-á vivido sem responsabilidade e mesmo sem significado, e Jung acreditava que a vida sem sentido era a mais insuportável de todas.


Extraído de YOUNG-EISENDRATH, Polly; DAWSON, Terence. Compêndio da Cambridge Sobre Jung. São Paulo: Madras, 2011.

domingo, 5 de julho de 2015

A Mente Imortal do Homem


Jung foi convidado pela Clínica Tavistock, em Londres – oficialmente denominada Instituto de Psicologia Médica – a realizar uma série de cinco conferências, que ele proferiu de 30 de setembro a 4 de outubro de 1935, para um público de cerca de duzentos médicos e médicas. Uma transcrição mimeografada dessas conferências circulou particularmente com o título de “Concepções Psicológicas Fundamentais”; somente em 1968 o texto foi publicado como Psicologia Analítica: Sua Teoria e Prática.1 A imprensa de Londres tomou conhecimento da presença de Jung e, durante sua visita, numerosas entrevistas foram publicadas, das quais é digna a do Observer de 6 de outubro de 1935. Ela é aqui resumida. “As gargalhadas do Dr. C. G. Jung podem ser, neste momento, ouvidas em Londres, após um silêncio de dez anos” – assim começa o anônimo repórter, e prossegue descrevendo o enorme bom humor de Jung. “Enquanto ele falava, tornou-se evidente a cisão abrupta entre sua própria teoria e prática psicológicas e as de Freud, de quem ele se separou intelectualmente há vários anos. Até que ponto a cisão é abrupta revela-se numa sentença típica de sua maneira imprevista e epigramática de falar...”
O sexo é um campo de recreação para cientistas solitários.
Tanto se poderia estudar a psicologia da nutrição quanto a psicologia do sexo. O homem primitivo, é claro, tinha instinto sexual, mas estava muito mais profundamente preocupado com a alimentação, onde obtê-la e em que quantidade. Aliás, por que basear a psicologia de um homem em seu ângulo menos favorável?
Quando me ocupo de alguém que é mentalmente desequilibrado, não estou preocupado apenas com uma função de sua mente e de seu corpo. Procuro nele o homem antigo. Procuro localizar os estratos da mente humana desde seus primórdios, tal como um geólogo estuda a estratificação da terra. O medo do homem antigo agachado junto a um riacho está em todas as nossas mentes inconscientes, assim como todos os outros medos e especulações nascidos da experiência do homem através dos tempos. A mente da espécie humana é imortal.
Por exemplo, recordo ter sentido subitamente, durante um abalo sísmico na Suiça, que a terra estava viva, que era um animal. Reconheci imediatamente a antiga crença japonesa de que uma gigantesca salamandra vive no interior da Terra e que os sismos acontecem quando ela dá voltas ao corpo durante o sono.2
Uma paciente minha disse-me certa vez que, sempre que um relâmpago rasgava o céu noturno, ela via um grande cavalo negro. Isso é uma outra ideia primitiva – que o raio era uma perna de cavalo escoiceando para baixo, o cavalo de Odin.3 Se um homem ou uma mulher deixa de poder comunicar conosco, dizemos que ele ou ela enlouqueceu. Mas se eu puder descobrir neles o homem antigo, se puder explicar o grande cavalo negro no relâmpago, então talvez seja capaz de fazê-los comunicarem comigo. Poderei restaurar a ponte – mais facilmente ainda se puder descobrir, através dos sonhos deles, o que está em suas mentes inconscientes.
É por isso que me correspondo não só com cientistas médicos, mas também com estudiosos de religião e mitologia em todas as partes do mundo. É por isso que estou atualmente estudando textos medievais no Museu Britânico. A camada medieval em nossa mente inconsciente é a que está mais próxima da superfície.
O estudo da ciência médica está em transição. As relações entre mente e corpo estão sendo mais plenamente apreciadas. Não que haja algo de novo nisso. Os doutores medievais estudavam sonhos. A medicina oriental baseia-se na psicoterapia – o tratamento de doenças por influência hipnótica.
A psicologia ainda não é, evidentemente, uma parte reconhecida do currículo médico. Há muito entusiasmo, mas também existe muita incompreensão e interpretação errônea. No entanto, eu tenho quatrocentos estudantes em Zurique. E os tribunais criminais chamam-me, como último recurso, se são incapazes de decidir sobre a culpa ou inocência de um suspeito.3a
Dentro de vinte anos, teremos uma organização de psicólogos clínicos diplomados, tal como existe hoje a Ordem dos Médicos.
Está quase pronto. Vou intitulá-lo “Símbolos Oníricos do Processo de Individuação”.4 É sobre o modo como o homem torna-se ele mesmo. O homem é sempre um indivíduo, mas nem sempre é ele mesmo... “Seja você mesmo”, como dizem os americanos.

Notas:
1. E como “As Conferências de Tavistock” em CW 18.
2. Cf. Ibid., § 67 (onde Jung contou a mesma história), n. 17: “De acordo com uma lenda japonesa, o namazu, uma espécie de bagre de dimensões monstruosas, carrega em suas costas a maior parte do Japão e, quando irritado, movimenta a cabeça ou a cauda, provocando assim abalos sísmicos”.
3. Ver Symbols of Transformation (CW 5), p. 277.
3a. Cf. “On the Psychological Diagnosis of Evidence” (orig. 1937), CW 2, §§ 1357 e ss. Jung tinha sido solicitado pelo Tribunal Criminal do Cantão de Zurique, em 1934, a apresentar um parecer de especialista sobre um acusado de homicídio, usando o experimento de associação.
4. A palestra de Jung na Conferência de Eranos, em agosto de 1935, assim intitulada, foi incluída em The Integration of the Personality (1939) e revista mais tarde como Parte II de Psychology and Alchemy (CW 12).

Extraído de McGuire, W.; Hull, R. F. C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, s/d.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Entrevista de Eliade Para “Combat”




Mircea Eliade entrevistou Jung na Conferência Eranos de 1952, perto de Ascona, em agosto. Jung tinha apresentado sua última lição Eranos no ano anterior, depois de ter falado praticamente em todas as conferências desde a primeira, em 1933. A primeira lição Eranos de Eliade foi dada em 1950, e continuou sendo um conferencista frequente durante toda a década de 1960. Romeno de nascimento, Eliade tinha estudado em Calcutá e Bucareste e, no começo da guerra, refugiou-se na Europa Ocidental*. Desde 1958, é professor emérito de história das religiões na Universidade de Chicago.
O artigo de Eliade “Rencontre avec Jung”, foi publicado em Combat: de la Résistance à la Révolution (Paris), 9 de outubro de 1952. Na presente versão, os comentários introdutórios e as interpelações de Eliade foram muito resumidos, e algumas correções e notas explicativas por Jung, que ele enviou tarde demais para a inclusão em Combat, foram inseridas no texto. O professor Eliade forneceu amavelmente esses aditamentos.
(Aos 77 anos de idade, o Professor C. G. Jung nada perdeu de sua extraordinária vitalidade, de seu surpreendente espírito juvenil. Ele acabou de publicar, um após o outro, três livros novos: sobre o simbolismo de Aion [Tempo], sobre sincronicidade, e “Resposta a Jó, o qual já deu origem a reações sensacionais, especialmente entre os teólogos.)
Esse livro sempre esteve em minha mente, mas aguardei quarenta anos para escrevê-lo. Fiquei terrivelmente chocado quando, ainda criança, li o Livro de Jó pela primeira vez. Descobri que Javé é injusto, que é mesmo um malvado. Pois permite-se ser persuadido pelo diabo, concorda em torturar Jó por sugestão se Satã. Na onipotência de Javé não existe consideração pelo sofrimento humano. São abundantes s exemplos da injustiça de Javé em certos escritos hebraicos. Mas não é esse o ponto; o ponto que interessa é a reação do crente à injustiça. A questão é a seguinte: Existe na literatura rabínica qualquer prova da existência de reflexão crítica ou de uma reconciliação desse conflito na Deidade? Num texto tardio, Javé solicita a bênção do sumo sacerdote Ishmael, e Ishmael respondeu-lhe: “Seja a Tua vontade que a Tua misericórdia suprima e Tua ira,e que a Tua compaixão possa prevalecer sobre os Teus outros atributos...”² O Todo-Poderoso sente que um homem verdadeiramente santificado é superior a Ele.
É possível que tudo isso seja uma questão de linguagem. Pode ser que aquilo que chamamos a “injustiça” e a “crueldade” da Javé sejam apenas fórmulas aproximadas e imperfeitas para expressar a transcendência total de Deus. Javé é “Aquele que é”, de modo que está acima e além do bem e do mal. Ele é impossível de ser apreendido, compreendido, formulado; por conseguinte, é misericordioso e injusto simultaneamente. Isto é uma maneira de dizer que nenhuma definição pode circunscrever Deus, nenhum atributo esgota as suas potencialidades.
Eu falo como psicólogo e, sobretudo, estou falando do antropomorfismo de Javé e não de sua realidade teológica. Como psicólogo, digo que Javé é contraditório, e também penso que essa contradição pode ser interpretada psicologicamente. A fim de testar a fidelidade de Jó, Javé concede a Satã uma licença quase ilimitada. Ora, esse fato não está isento de consequências para a humanidade. Eventos muito importantes são iminentes no futuro por causa do papel que Javé se sentiu obrigado a atribuir a Satã. Diante da crueldade de Javé, Jó está silencioso. Esse silencia é a mais bela e a mais nobre resposta que o homem pode dar a um Deus onipotente. O silêncio de Jó é já uma anunciação do Cristo. De fato, Deus fez-se homem, tornou-se Cristo, a fim de redimir a sua injustiça para com Jó.
Javé errou mas reconheceu o erro. Será Jó sabedor disso? De qualquer modo, a posteridade percebeu o conflito doloroso causado pela imoralidade de Javé. Há a história de um sábio muito piedoso e devoto que não suportava ler o Salmo 89³. Jó está certamente consciente da injustiça divina e, assim, está mais consciente do que Javé. É a superioridade sutil do progresso do homem em consciência moral, em face de um Deus menos consciente. Essa é a razão para a Encarnação.
O grande problema em psicologia é a integração de opostos. Encontramo-lo em toda a parte e em todos os níveis. Em Psicologia e Alquimia (CW 12) tive ocasião de me interessar pela integração de Satã. Pois enquanto Satã não for integrado, não haverá cura para o mundo nem salvação para o homem. Mas Satã representa o mal – e como pode o mal ser integrado? Só existe uma possibilidade: assimilá-lo, ou seja, elevá-lo ao nível da consciência. Isso é feito mediante um processo simbólico muito complicado, o qual é mais ou menos idêntico ao processo psicológico de individuação. Em alquimia, chama-se a conjunção dos dois princípios. De fato, a alquimia assumiu e levou por diante a obra do cristianismo. Na concepção alquimista, o cristianismo salvou o homem, mas não a natureza. O sonho do alquimista era salvar o mundo em sua totalidade; a pedra filosofal foi concebida como o filius macrocosmi, o que salva o mundo, ao passo que o Cristo era o filius microcosmi, o salvador apenas do homem.4 A finalidade suprema do opus alquímico é a apokatastasis, a salvação cósmica.
Estudei alquimia durante 15 anos,5 mas nunca falei sobre isso a ninguém; não desejava influenciar os meus pacientes ou meus colegas de trabalho por sugestão. Mas, após 15 anos de pesquisa e observação, impuseram-se-me conclusões inelutáveis. As operações alquímicas eram reais, só que essa realidade não era física mas psicológica. A alquimia apresenta a projeção de um drama cósmico e espiritual em termos de laboratório. O opus Magnum tinha duas finalidades: o resgate da alma humana e a salvação do cosmo. Aquilo a que o alquimista chamava “matéria” era, na realidade, o eu [inconsciente]. A “alma do mundo” (anima mundi), que foi identificada com o spiritus mercurius estava aprisionada na “matéria”. Por essa razão é que o alquimista acreditava na verdade da “matéria”, porquanto a “matéria” era, na realidade, a própria vida psíquica do alquimista. Mas era uma questão de libertar essa “matéria”, de salvá-la – numa palavra, de descobrir a pedra filosofal, o corpus glorificationis.
Esse trabalho é difícil e repleto de obstáculos; o opus alquímico é perigoso. Logo no começo, encontramos o “dragão”, o espírito ctônico, o “diabo” ou, como os alquimistas lhe chamavam, a “escuridade”, o nigredo, e esse encontro produz sofrimento. A “matéria” sofre até ao desaparecimento final da escuridade; em termos psicológicos, a alma encontra-se nas vascas da melancolia e da angústia, travando uma luta com a “sombra”. O mistério da conjunção (coniunctio), o mistério central da alquimia, visa precisamente a síntese dos opostos, a assimilação da escuridade, a integração do diabo. Para o cristão “despertado” isso constitui uma experiência psíquica muito séria, pois trata-se de um encontro com a sua própria “sombra”, com a escuridade, o nigredo, que permanece à parte e nunca pode ser completamente integrado na personalidade humana.
Ao interpretar-se o confronto do cristão com sua sombra em termos psicológicos, descobre-se o medo oculto de que o diabo seja mais forte, de que Cristo não tenha conseguido conquistá-lo completamente. Caso contrário, por que se acreditava e ainda se acredita no Anticristo? Por que se aguardava e continua se aguardando a vinda do Anticristo? Porque só depois do reino do Anticristo e só depois do segundo advento do Cristo o mal será finalmente conquistado no mundo e na alma humana. Em nível psicológico, todos esses símbolos e crenças são interdependentes; é sempre uma questão de lutar com o diabo, com Satã, e de conquistá-lo, ou seja, de assimilá-lo, integrando-o na consciência. Na linguagem dos alquimistas, a matéria sofre até que o nigredo desapareça, quando a aurora será anunciada pela cauda do pavão (cauda pavonis) e um novo dia nascerá, o leukosis ou albedo. Mas nesse estado de “brancura” não se vive, na verdadeira acepção da palavra; é uma espécie de estado ideal, abstrato. Para insuflar-lhe vida, deve ter “sangue”, deve possuir aquilo a que os alquimistas chamam o rubedo, a “vermelhidão” da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal do albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de escuridade é dissolvido, em que o diabo deixa de ter uma existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, o opus Magnum está concluído: a alma humana está completamente integrada.
Eu sou e continuo sendo um psicólogo. Não estou interessado em qualquer coisa que transcenda o conteúdo psicológico da experiência humana. Nem sequer pergunto a mim mesmo se tal transcendência é possível, visto que, em qualquer caso, o transpsicológico tampouco é de interesse para o psicólogo. Mas no nível psicológico tenho que ocupar-me das experiências religiosas que possuem uma estrutura e um simbolismo que pode ser interpretado. Para mim, a experiência religiosa é real, é verdadeira. Apurei que, através de tais experiências religiosas, a alma pode ser “salva”, a sua integração acelerada, e estabelecido o equilíbrio espiritual. Para mim, como psicólogo, o estado de graça existe: é a perfeita serenidade da alma, um equilíbrio criativo, a fonte de energia espiritual. Falando sempre como psicólogo, afirmo que a presença de Deus é manifesta, na experiência profunda da psique, como uma coincidentia oppositorum, e toda a história da religião, todas as teologias, dão testemunho do fato de que a coincidentia oppositorum é uma das mais comuns e mais arcaicas fórmulas para expressar a realidade de Deus. A experiência religiosa é numinosa, como Rudolf Otto a designa, e, para mim, como psicólogo, essa experiência difere de todas as outras de um modo que transcende as categorias ordinárias de espaço, tempo e causalidade. Recentemente, empenhei-me no estudo da sincronicidade6 (em poucas palavras, a “ruptura do tempo”), e estabeleci que se assemelha estreitamente às experiências numinosas em que espaço, tempo e causalidade são abolidas. Não aplico qualquer juízo de valor à experiência religiosa. Afirmo que um conflito interno é sempre a fonte de profundas e perigosas crises psicológicas, tão perigosas que podem destruir a integridade de um homem. Esse conflito interno manifesta-se psicologicamente nas mesmas imagens e no mesmo simbolismo testemunhados por toda e qualquer religião no mundo, e utilizados também pelos alquimistas.
Por isso me interessei pela religião, por Javé, Satã, Cristo pela Virgem. Entendo muito bem que um crente veja algo muito diferente nessas imagens do que eu, como psicólogo, tenho o direito de ver. A fé de um crente é uma grande força espiritual, é a garantia de sua integridade psíquica. Mas eu sou médico e estou interessado em curar meus semelhantes. A fé e somente a fé já não tem poder – infelizmente! – para curar certas pessoas. O mundo moderno está dessacralizado; por isso está em crise. O homem moderno deve redescobrir uma fonte mais profunda de sua própria vida espiritual. Para tanto, é obrigado a lutar como o diabo, a enfrentar sua própria sombra, a integrar o diabo. Não há outra escolha. É por isso que Javé, Jó, Satã, representam situações psicologicamente exemplares; eles são como paradigmas do eterno drama humano.
(Jung descobriu o inconsciente coletivo – quer dizer, tudo o que precede a história pessoal do ser humano – e aplicou-se a decifrar as suas estruturas e a sua “dialética”, com vistas a facilitar a reconciliação do homem com a parte inconsciente de sua vida psíquica e a conduzi-lo no sentido da integração de sua personalidade. Ao invés de Freud, Jung toma em consideração a história: os arquétipos, a essas estruturas do inconsciente coletivo, estão carregados de história. Já não é uma questão, como quer Freud, de uma “espontaneidade natural” do inconsciente de cada indivíduo, mas de um imenso reservatório de lembranças históricas, uma memória coletiva na qual é preservada, em essência, a história de toda a humanidade. Jung acredita que o homem deve fazer maior uso desse reservatório; o seu método analítico dedica-se, precisamente, a encontrar os meios adequados para usá-lo.)
O inconsciente coletivo é mais perigoso do que dinamite, mas existem métodos para manipulá-lo sem maiores riscos. Depois, quando se desencadeia uma crise psicológica, estamos em melhor posição do que qualquer outro para resolvê-la. Temos sonhos e devaneios; tratemos de os observar. Poderíamos quase dizer que todo o sonho, à sua própria maneira, contém uma mensagem. Ela não só nos diz que algo está errado nas profundidades do nosso ser, mas também nos oferece uma solução para sair da crise. Pois o inconsciente coletivo que nos envia esses sonhos já possui a solução: nada se perdeu de toda a experiência imemorial da humanidade, toda a situação imaginável e toda a solução parecem ter sido previstas pelo inconsciente coletivo. Basta apenas que observemos cuidadosamente. A análise ajuda a ler corretamente essas mensagens.
(Foi observando seus próprios sonhos – que ele tentou em vão interpretar nos termos da psicanálise freudiana – que Jung foi levado a pressupor a existência do inconsciente coletivo. Isso aconteceu em 1909. Dois anos depois, começou a dar-se conta da importância de sua descoberta.7 Finalmente, em 1914, ainda em consequência de uma série de sonhos e devaneios, ele compreendeu que as manifestações do inconsciente coletivo são, em parte, independentes das leis do tempo e da causalidade. Como o Professor Jung amavelmente me permitiu que falasse desses sonhos e devaneios, os quais desempenharam um papel capital em sua carreira científica, eis um resumo8 deles.)
Em outubro de 1913, enquanto viajava de trem de Zurique para Schaffhausen, ocorreu-me um estranho incidente. Ao atravessar um túnel, perdi a consciência de tempo e lugar, e só fui acordado uma hora depois, quando o condutor anunciou a chegada a Schaffhausen. Durante todo esse tempo fui vítima de uma alucinação, de um devaneio. Estava olhando para o mapa da Europa e vi como, país por país, começando com a França e a Alemanha, a Europa era tragada pelo mar, até ficar submersa. Pouco depois, todo o continente era um lençol de água, com exceção da Suíça; a Suíça era como uma alta montanha que as ondas não podiam alcançar. Vi-me sentado na montanha. Mas então, olhando mais atentamente à minha volta, percebi que o mar não era de água mas de sangue. Flutuando sobre as ondas havia cadáveres, telhados de casas, madeiras calcinadas.
Três meses mais tarde, em dezembro de 1913, e novamente no trem que me levava a Schaffhausen, repetiu-se o mesmo devaneio, de novo ao entrar no túnel. (Dei-me conta, subequentemente, de que era como uma imersão no inconsciente coletivo.) Como psiquiatra, fiquei preocupado, imaginando se eu não estaria a caminho de “fazer uma esquizofrenia”, como dizíamos na linguagem desses tempos. Finalmente, alguns meses mais tarde, tive o seguinte sonho: Vi-me nos mares do sul, perto de Sumatra, no verão, acompanhado de um amigo. Mas soubemos pelos jornais que uma terrível onda de frio tinha varrido a Europa, como não havia notícia de que tivesse ocorrido antes. Decidi ir até Batávia e embarcar num navio de volta à Europa. O meu amigo disse-me que pegaria um veleiro de Sumatra para Hadramaut, e daí continuaria sua viagem através da Arábia e Turquia. Cheguei à Suiça. Em meu redor só via neve e mais neve. Uma vinha enorme estava crescendo algures; tinha muitos cachos de uvas. Acerquei-me e comecei apanhando as uvas, distribuindo-as por um magote de gente que me rodeava mas que eu não podia ver.
Três vezes esse sonho se repetiu e, finalmente, fiquei deveras intranquilo. Eu estava justamente nessa época preparando uma conferência sobre esquizofrenia, para ser lida num congresso em Aberdeen,9 e não me cansava de repetir para mim mesmo: “Estarei falando de mim mesmo! Muito provavelmente, enlouquecerei depois de ler a conferência”. O congresso teria lugar em julho de 1914 – exatamente o período em que, nos meus três sonhos, via-me viajando pelos mares do sul. A 31 de julho, imediatamente após a minha conferência, soube pelos jornais que eclodira a guerra. Finalmente, entendi tudo. E quando desembarquei na Holanda, no dia seguinte, ninguém era mais feliz do que eu. Agora tinha a certeza de que nenhuma esquizofrenia me ameaçava. Compreendi que os meus sonhos e as minhas visões me chegavam do subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava agora fazer era aprofundar e validar essa descoberta. E isso é o que estou tentando fazer há 40 anos.
(Jung ficou satisfeito ao receber uma segunda explicação desse sonho pouco depois. Os jornais não tardaram em noticiar que um capitão da Marinha alemã, de nome von Mücke, que tinha cruzado os mares do sul num veleiro, de Sumatra para Hadramaut, se refugiara na Arábia e daí alcançara a Turquia.10)

* Eliade foi professor durante seis anos na Faculdade de Letras (Departamento de História e Filosofia) na Universidade Clássica de Lisboa. (N. do T.)
1. Antwort auf Hiob, publicado originalmente em 1952, provocou grande discussão. Trad. Inglesa, 1954; em CW 11 (1958).
2. Zera’im I, Berakoth 7, em The Babylonian Talmud (trad. De I. Epstein), p. 30. Cf. Aion (orig. 1951), CW 9, ii, § 110.
3. Cf. “Answer to Job”, CW 11, § 685.
4. Cf. “Paracelsus as a Spiritual Phenomenon”, CW 13, §§ 162 e ss.
5. Eliade também tinha sido um estudioso de alquimia antes desta entrevista. Cf. sua Alchemia Asiatica (Bucareste, 1935). [Em 1956, quatro anos depois desta entrevista com Jung, Eliade publicou Forgerons et alchimistes (Paris); nesse livro, já traduzido no Brasil (Ferreiros e Alquimistas, Zahar, 1980), figura uma extensa nota (Nota P) intitulada “C. G. Jung e a Alquimia”, em que se reflete a influência exercida sobre Eliade pelo seu encontro em Ascona com Jung. (N. do T.)]
6. “Synchronicity: An Acausal Connecting Principle” (orig. 1952); em CW 8.
7. Esta série de sonhos principiou com o sonho do prédio de muitos andares, em 1909, quando Jung e Freud analisaram os sonhos recíprocos na viagem de ambos aos Estados Unidos. Não é mencionado em The Freud/Jung Letters, mas foi registrado e comentado em Memories, Dreams, Reflections, pp. 158 e ss./154 e ss., e citado em “Mind and Earth” (Orig. 1927), CW 10, § 54. Foi então seguido pelos sonhos arquetípicos registrados em Memories, Dreams, Reflections, pp. 163 e ss./ 158 e ss., e 171 e ss./ 166 e ss., os quais culminaram nos sonhos de “catástrofe mundial” de 1913 e 1914.
8. No original francês, os sonhos nos dois parágrafos seguintes foram relatados na terceira pessoa. Eles contêm alguns pormenores significativos que não se encontram no relato na primeira pessoa dos mesmos sonhos em Memories, Dreams, Reflections, pp. 175 e ss./ 169 e ss.
9. Não sobre esquizofrenia, mas “Sobre a Importância do Inconsciente em Psicopatologia”, CW 3.
10. A notícia de viagem do Comandante Helmuth von Mücke foi publicada no Neue Zürcher Zeitung, de 4 de agosto de 1915, e a rota corresponde à indicada aqui. Mais tarde, nesse mesmo ano, von Mücke publicou um relato de suas aventuras num livro intitulado Ayesha (nome de sua escuna).

Extraído de McGuire, W.; Hull, R. F. C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, s/d.

domingo, 1 de março de 2015

Quatro "Contatos com Jung"



Michael Fordham, o eminente analista médico entre os junguianos britânicos e um dos coordenadores das Obras Completas, organizou Contact with Jung (Londres, 1966), uma coletânea de “ensaios sobre a influência da obra e personalidade de Jung” por 42 discípulos de Jung na Europa, Inglaterra, Estados Unidos e Israel. Foram escolhidos excertos de quatro recordações vívidas e imediatas, as quais atam desde finais da década de 1930 até finais da de 1950.

A. I. Allemby (Oxford)

Tive o primeiro contato com Jung depois do final da segunda guerra mundial. Escrevi-lhe então, e disse-lhe quem era e o que estava fazendo, o que incluía a preparação de uma tese sobre psicologia da religião. Com a sua resposta, Jung enviou o manuscrito de seu ensaio sobre a Trindade¹ – uma nova versão que ainda não fora publicada. Foi uma atitude deveras generosa de sua parte, e uma cativante prova de encorajamento para o completo estranho que, nessa época, eu era para ele. Somente cerca de um mês antes de sua morte voltei a receber uma carta de Jung, em resposta a uma minha, na qual ele abordou com grande cuidado todas as questões que eu levantara. E terminava com estas palavras: “Os meus melhores votos de êxito para quaisquer novas descobertas que possa fazer.”
Essa é a primeira característica que nos impressiona em Jung: o seus respeito pela outra pessoa, seja ela quem for, e seu interesse sincero pelo valor individual de cada um. Quando o fui visitar pela primeira vez em Künsnacht, eu estava cheio de apreensões sobre como me comportaria no encontro com o grande homem – mas no momento em que entrei na intimidade de seu pequeno e acolhedor gabinete de trabalho senti-me completamente à vontade.
Certa vez, quis fazer-me entender que uma pessoa não deve sentir-se culpada a respeito de eventos que ocorrem por sua própria conta. “São como atos de Deus”, disse ele. “Pense neles como se um edifício tivesse sido atingido por um raio; também isso é um ato de Deus. Havia uma igreja numa aldeia suíça que tinha sido danificada por um raio, e o pastor percorreu a aldeia a fim de recolher donativos para os necessários reparos; um velho e esperto aldeão disse-lhe: ‘O que? Você não me vai convencer a soltar um tostão sequer, se Ele destrói a sua própria casa!’ Esse homem estava certo”, disse Jung, soltando uma gargalhada.
Numa outra ocasião, Jung explicou-me o que acontece quando uma pessoa não confia em seus próprios sentimentos e se recusa a agir de acordo com eles. Você pode ver da janela o meu abrigo de barcos, à beira do lago”, disse ele. “Tempos atrás, fui nadar um pouco e depois deitei-me na varanda do abrigo para secar ao sol. O nível do lago estava tão alto que o abrigo ficou cercado de água. Apareceu então o meu cão, à minha procura. Não me podia ver e não tinha a certeza se eu estaria no abrigo ou não. Estando numa disposição algo covarde e não muito afeiçoado à água, o cão meteu primeiro uma pata no lago, retirou-a, depois a outra pata e retirou-a também. Ficou assim por algum tempo. Finalmente, eu fiz um leve ruído, e o cão lançou-se à água e galgou os degraus do abrigo num abrir e fechar de olhos. O cão está condicionado pelo instinto e não tem força de vontade própria, exceto quando um ruído do dono a desencadeia.” Jung, é claro, queria mostrar-me, embora deixasse para mim extrair as conclusões, que uma pessoa que não confia em seus próprios sentimentos ou pensamentos, e não utiliza a sua vontade para os pôr à prova, dificilmente se distinguirá de uma animal; como ser humano consciente, quase não existe.
De uma outra vez, Jung voltou a discorrer sobre o problema da falta de autoconfiança, usando um novo exemplo a título ilustrativo: “As nossas necessidades e os nossos desejos estão sempre ativos”, disse ele. “Os problemas ocorrem somente se eles estão ativos no inconsciente, se nós não os dominamos conscientemente, para lhes darmos uma forma e uma direção definidas. Se nos recusarmos a fazer isso, somos arrastados por eles e tornamo-nos suas vítimas. Eles são, nesse caso, como um trenó deslizando montanha abaixo na neve, sem ninguém controlando os freios. Temos que nos colocar firmemente no controle, não ficando de olhos fechados no banco traseiro ou, pior ainda, relutantes em entrar no trenó para a viagem; isso apenas serve para nos deixar em pânico. As nossas energias inconscientes impulsionam a nossa viagem através da vida e, se guiarmos a nossa própria rota, as nossas ações terão força; poderemos até sentir que Deus está atrás de nós”.
Contou-me que conheceu certa vez um homem distinto, um quacre, que não podia imaginar ter cometido em toda a sua vida alguma coisa errada. “E sabe o que aconteceu a seus filhos?”, perguntou Jung. “O filho tornou-se um ladrão e a filha uma prostituta. Como o pai não assumia a sua sombra, a sua cota na imperfeição da natureza humana, seus filhos foram compelidos a viver o lado negro que ele tinha ignorado.”
Lembro de ouvir Jung afirmar, numa ocasião: Cada ser humano é inerentemente uma forma única e individual de vida. Ele é feito assim. Mas existe algo que o homem pode fazer acima do material que lhe é dado pela natureza, e é que pode tornar-se consciente daquilo que faz dele a pessoa que é, e pode trabalhar conscientemente no sentido de relacionar o que ele mesmo é com o mundo à sua volta.” E, acrescentou Jung, meditativo, “isso talvez seja tudo o que podemos fazer.”
Numa outra ocasião, disse-me como se estivesse falando para si mesmo: “É assim que você deve viver – sem reservas, seja no dar como no recusar, de acordo com o que as circunstâncias requeiram. Então você chegará ao seu destino a são e salvo. No fim de contas, se você mesmo assim encalhar, há sempre a enantiodromia do inconsciente, a qual abre novos caminhos quando a vontade consciente e a visão fracassam”.

Kenneth Lambert (Londres)

Um modo de expresser uma dívida pessoal para com Jung é recordar certas experiências pessoais que registramos dele em ação como pessoa em certos momentos do tempo, comunicando sua experiência a uma outra pessoa – em comparação com Jung, o teórico.  Tenho duas dessas recordações. A primeira é dele em Londres, em 1939, quando respondeu a perguntas que lhe foram apresentadas por um grupo de médicos, psicoterapeutas e eclesiásticos, inclusive um bispo. O resultado foi uma série de dissertações sobre “A Vida Simbólica”,² e acerca da pobreza e potencial neurótico de indivíduos e grupos para quem tal experiência era desprovida de significado. Nessa época, a exuberância pessoal e a envergadura física de Jung eram notórias, e vimo-lo pela última vez saindo da reunião, uma expressão de certo humor brincalhão estampada no rosto, de braço dado com o bispo – de braço dado, apesar da comunicação entre eles sobre o tema do símbolo não ter avançado grande coisa.
Onze anos depois, Jung concedeu-me metade de uma manhã para uma entrevista pessoal. Falou com franqueza espontânea e um desembaraçado senso de paradoxo. Recordou o grupo e o bispo, e afirmou que o teólogo estava hoje superado, devido, entre outras coisas à sua incapacidade para entender a projeção. Mas acrescentou: “Sempre tive um sentimento de compaixão pelos pastores religiosos de qualquer credo. Eles têm que enfrentar um problema dos diabos.” Ele tinha participado nisso, é claro, porquanto falou com emoção de seu próprio pai, que “apesar de toda a sua inteligência, tinha sido impotente a respeito de tudo isso – tão limitado e tão fora de contato com a natureza e os sonhos.” De fato, a base intensamente pessoal e histórica da motivação científica de Jung revelou-se quando me mostrou fotografias de seu avô, o médico, e de seu pai, o pastor – testa ampla e sensibilidade na expressão fisionômica. “Eu tive que resolver todo o problema do pai,” disse ele. “Sou sempre impopular... com os teólogos e os médicos... Estou sempre mettant mes pieds sur le plat. Esses coleguinhas  médicos não têm inteligência,” acrescentou ele. “Eles trabalham demais de fora para dentro, ao passo que a psicologia de todo o mundo está fazendo planos cuidadosos para coloca-los num estado em que eles têm de enfrentar-se a si mesmos e à sombra. É a oportunidade que se lhes dá de perceberem e realizarem o próprio eu. Se os pudermos fazer sair de seu buraco, dando-lhes um pontapé no traseiro, estaremos fraudando-os em seu direito de nascimento.” Os mesmos pés foram metidos no prato dos teólogos. Com efeito, Jung enfatizou como o cristianismo forçou as pessoas as pessoas a enfrentarem a sombra, e delineou uma tese por ele desenvolvida para demonstrar que São Tomás de Aquino acreditava realmente ter sido o mundo criado pelo Diabolus. O próprio senso da dificuldade fez Jung contar uma história rabínica de como Deus queria fazer um mundo com sua misericórdia e sua justiça. O problema era que, se ele usasse a sua misericórdia, teria de haver pecados demais, e se usasse sua justiça, seria impossível viver. Assim, misturou as duas e disse: “Oh, como desejo que existisse um mundo!” Jung deu uma estrepitosa gargalhada, e continuou discorrendo sobre o simbolismo vinculado ao Cristo, indicando opostos em sua natureza, como, por exemplo, o Leviatã, o Leão, a Serpente, o Corvo Negro, e sua crucificação entre dois ladrões. Depois, o simbolismo tornou-se astrológico. Jung afirmou que, no nascimento de Cristo, Saturno, o deus maléfico, e Júpiter, o deus benéfico, estavam tão próximos um do outro que eram quase um só astro, ou seja, a estrela de Belém, quando o novo eu, Cristo, bem e mal, nasceu. Depois, Jung associou a isso duas histórias sobre pessoas. Um homem falou a Jung sobre um quacre que parecia ser um homem perfeitamente bom. Onde estava então a sombra dele? Jung indagou sobre a esposa desse quacre. Segundo parece, ela também era perfeita, informou o homem. E os filhos dele? “Ah,” disse o informante, “um deles é um ladrão.” A segunda história dizia respeito a um teólogo sem sombra, mas veio a saber-se que seu filho “andava forjando cheques.” O comentário de Jung foi: “O filho assume a sobra do pai. O pai dele, entende?, estava subtraindo de Deus os seus pecados. Assim, o filho foi punido pelos pecados de que o pai não prestava contas a Deus.”

Renée Brand (São Francisco)

O ano de 1955, no outono. Saímos da sala de estar onde tinha sido servido chá e descemos para o jardim de Seestrasse, 228, em Küsnacht. Dez estudantes do Instituto tinham sido delegados para celebrar com Jung o plantio de uma árvore Ginkgo biloba, que lhe foi oferecida pela passagem do seu 80º aniversário. Formávamos um semicírculo próximo do local escolhido para a árvore, enquanto dois jardineiros começaram cavando o buraco. Entre eles estabeleceu-se um ritmo alternado, acentuado pelas pás que rompiam a terra e o baque surdo da terra ao ser jogada para o lado. Jung estava dando instruções sobre a largura e a profundidade do buraco, preocupado em que as raízes tivessem suficiente espaço. Quando olhei para ele, envolto na luz crua da tarde, Jung pareceu-me subitamente menos vigoroso, seu arcabouço menos poderoso – diferente do que eu vira em minha recente visita, ou mesmo alguns minutos antes durante o chá. Tinha o aspecto de todos os seus oitenta anos e muito frágil, a fragilidade da velhice. Com o choque que me causou essa observação, um crescendo sinistro parecia incorporar-se ao ritmo das pás cavando a terra e jogando-a fora. Irracionalmente , parecia que esse buraco não era para plantar uma árvore, que os dois homens não eram jardineiros mas coveiros. A sensação de morte era tão forte em mim que a cena tornou-se-me intolerável, e ali fiquei imóvel, dominado por uma profunda sensação de impotência e rezando para que tudo aquilo acabasse depressa. De súbito, ouvi Jung dizer em voz alta: “Isto nada tem a ver com a morte. Eles estão plantando uma nova vida.” Ele olhava frontalmente para mim, sem se dirigir a ninguém. Ter o meu pensamento mudo em minha cabeça assim captado e respondido era algo tão desconcertante e assustador que o pânico irracional converteu-se num experiência numinosa.

Elizabeth Osterman (São Francisco)

A pesada porta de madeira maciça em que eu acabara de bater estava encaixada numa espessa parede de pedra que parecia fazer solidamente parte da própria terra. Era a entrada para refúgio de aspecto medieval que Jung tinha construído no campo com suas próprias mãos, ano após ano, em Bollingen, às margens do lago de Zurique. A caminho das ilhas do Egeu, nesta primeira viagem para longe da costa oeste dos Estados Unidos, fiz uma parada na Suíça para esta visita. Saindo da rodovia a uma certa distância da cidade de Rapperswil, atravessei uma vereda que ladeava um denso bosque à retaguarda de um conjunto de muros e torres de pedra. Poucos metros adiante, à minha esquerda, a água do lago vinha lamber suavemente os juncos que orlavam a margem. O sol de junho aquecia a terra empapada de chuva e uma neblina tênue cobria as montanhas distantes.
Enquanto aguardava diante da porta, sentia-me um tanto nervosa, mas fui tranquilizada pelos sons de cortar lenha que vinham de trás do muro... A porta abriu-se e fui convidada a entrar no jardim interior por seu acompanhante doméstico. Aí, mais além de um segundo vão de porta, estava o corpulento octogenário de cabelos brancos, com seu avental verde de operário, sentado atrás do cepo de cortar lenha. Um pouco mais adiante via-se um grande quadrado de pedra esculpido por ele em anos passados, quando Jung estava tentando dar forma às suas concepções emergentes. Senti como se tivesse saído do tempo e penetrado num mundo interior onde tudo era importante, pausado e natural.
Sentamo-nos confortavelmente em cadeiras à beira da água e, durante a tarde, a conversa espraiou-se pela pré-história da terra, as profundezas da psique e as maravilhas da natureza à nossa volta. Em dado momento olhei para o meu relógio e Jung disse: “Não faça caso do relógio. Digo-lhe eu.” Voltou frequentemente ao tema do que o homem está fazendo a si mesmo ao viver de um modo apressado e sem sentido, como acabou por divorciar-se de seu próprio eu. Com espontaneidade e grande simplicidade, disse: “Temos que dar tempo à natureza para que ela possa cuidar maternalmente de todos nós. Eu descobri aqui o modo de viver como parte da natureza, de viver de acordo com o meu próprio tempo. No mundo moderno, as pessoas estão sempre vivendo para que algo melhor aconteça amanhã, sempre no futuro, de modo que não pensam em viver suas vidas. São infelizes. Quando um homem começa a conhecer-se, a descobrir as raízes de seu passado em si mesmo, é um novo modo de vida.”
A força que irradiava desse homem sentado à minha frente era surpreendente. Parecia-me simultaneamente poderoso e simples; real do modo que o céu, as pedras, as árvores e a água em torno dele eram reais. Tudo isso parecia fazer parte de sua própria natureza mas o que tornava a cena ainda mais excitante era ele ter consciência disso.
Uma pancada na porta interrompeu a conversa; o motorista do táxi chegara. Jung comentou: “Foi o que eu disse”. Era tempo de partir.

Notas:

1. “A Psychological Approach to the Dogma of the Trinity”. CW 11; foi originalmente uma aula na Conferência de Eranos, em 1940. A nova versão foi preparada para Symbolik des Geistes (1948).
2. Uma palestra proferida em 5 de abril de 1939, num seminário organizado pela Sociedade de Psicologia Pastoral, publicada como Guild Lecture No. 80 em 1954, e incluída em CW 18. Richard Parsons, bispo de Southwark, foi um dos participantes.


Extraído de McGuire, W.; Hull, R. F. C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, s/d.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Carl Jung na Time Magazine em 1955



Em 14 de fevereiro de 1955, o perfil do Psiquiatra Carl Jung figurou na capa da Time Magazine.

A faixa amarela diagonal no canto superior direito informava “Explorando a ALMA: Um Desafio para Freud”. O título do longo artigo na seção Medicina foi “O Velho Sábio”.


Segue abaixo a tradução da matéria, não foi encontrada referência sobre o autor da entrevista.

TIME MAGAZINE

Segunda-Feira, 14 de fevereiro de 1955

MEDICINA: O VELHO SÁBIO


Freud, Adler e Jung são nomes que personificam, acima de todos os outros, a exploração inquieta do homem moderno de sua própria mente, suas lutas pelo auto-conhecimento e para o controle de seus impulsos mais sombrios. No século 20, impulsionada pelas teorias detalhadas e pelos dogmas destes três homens, a psicologia explodiu nos consultórios e clínicas, espalhando-se por toda a vida e não deixando nada intocado - nem o amor, nem a máquina, nem a guerra, nem a política, nem a arte, nem a moral, nem Deus. Dos três pioneiros que construíram esta Era da Psicologia, Freud e Adler estão mortos. O terceiro, Carl Gustav Jung, ainda está, aos 79 anos, incansavelmente aventurando-se na vastidão da psique.


Na semana passada, envolto pela fumaça do cachimbo que rodopiava por seu cabelo branco e dava-lhe o aspecto de um alquimista medieval, Jung estava ocupado em um estudo antiquado, em sua casa de pé-direito alto em Küsnacht no Lago de Zurique. A obra em três volumes em que foi pontilhando o último "i" parecia estranha para um psiquiatra moderno: Representação dos Problemas dos Opostos na Filosofia Medieval Natural. "Um pouco abstrusa, hein?" Jung disse a um visitante. Em seguida, o riso balançou seus ombros pesados. “Eu devo rir! Eu tenho um problema infernal para fazer as pessoas compreenderem o que eu quero dizer”.

Para um homem que introduziu palavras como introvertido, extrovertido e complexo (em seu sentido psicológico) para o vocabulário padrão de milhões, Jung tem de fato uma grande dificuldade em fazer as pessoas enxergarem o que ele quer dizer. Isso é em parte porque ele tem explorado o yoga, a alquimia, contos de fadas, os ritos tribais dos índios Pueblo, filósofos românticos alemães, Zen Budismo, percepção extra-sensorial e os desenhos rupestres do homem pré-histórico, juntamente com uma estimativa de 100.000 sonhos. Mas quando o Dr. Jung é acusado de ter deixado a medicina em favor do misticismo, ele responde que a psiquiatria deve levar em conta toda a experiência do homem, desde o mais intensamente prático ao mais tenuamente místico.



Se os detalhes de seu trabalho são, por vezes nebulosos, seu objetivo geral é claro: ajudar o homem a viver em paz com seu inconsciente. Esse é o objetivo também dos outros "psicólogos profundos", mas Jung difere significativamente dos demais. Ele é um desafio constante para o legado de seu antigo mestre, Sigmund Freud, cujos ensinamentos têm afetado a visão do homem de si mesmo mais profundamente do que qualquer coisa desde a teoria da evolução pela seleção natural de Darwin.


A VISÃO FREUDIANA


Durante a maior parte da era cristã, a cura da mente era considerada parte do reino da alma. O Iluminismo aboliu a alma. O seu lugar foi tomado, nas mentes de milhões de pessoas, pela razão, que ficou acima de uma grande quantidade de instintos.



Quando Freud era jovem, a investigação científica e o materialismo governavam até mesmo a psiquiatria. A pesquisa foi destinada a encontrar causas fisiológicas para efeitos psíquicos. A grande contribuição de Freud foi a descoberta da mente inconsciente, a fonte de impulsos humanos que não se encaixam nesse sistema estreito.



Mas Freud ainda se agarrava ao cientificismo mecânico e material da sua época. Ele construiu um novo esquema da mente, detalhado e maquinal. O vapor que faz a máquina funcionar era a energia sexual ou libido. Na visão de Freud, o inconsciente era desordenado contendo material emocional, comumente considerado como esquecido, mas, na verdade, reprimido por causa de um conflito entre os desejos sexuais e os padrões pessoais ou sociais do que é aceitável.



Freud concluiu que para livrar os pacientes de suas neuroses, ele tinha que desenterrar o material reprimido e expô-la aos processos de limpeza da mente consciente. O conceito freudiano de libido, eventualmente, acabou sendo ampliado para incluir o amor e a amizade, mesmo que fossem ideias abstratas. Mas Freud estreitamente insistiu que o desejo de parricídio e incesto infantis, que ele chamou de Complexo de Édipo, era crucialmente importante em todos os seres humanos. Como Jung mordazmente colocou: “O cérebro é visto como um apêndice das glândulas genitais”.



De Viena, Alfred Adler, um antigo discípulo de Freud, logo rejeitou esta visão totalitária do sexo, e formulou sua teoria de que os seres humanos são movidos mais pelo poder por causa de sentimentos inerentes de inferioridade. Mas, no mundo freudiano, o ser humano fica sozinho, sem vontade de fazer escolhas morais livres, condicionadas por impulsos misteriosos e traumas, sobre os quais ele não tem controle. O trabalho criativo, as boas ações e a aspiração a algo são apenas "sublimação". A religião é geralmente uma forma de neurose; Deus é uma projeção da imagem do Pai.



É contra esta visão de vida, esta "psicologia sem psique", que Jung protesta em toda a sua obra.



A RESPOSTA JUNGUIANA



O inconsciente do homem, argumenta Jung, não é apenas uma cesta de lixo para experiências desagradáveis jogados fora pela mente consciente, mas um vasto depósito subterrâneo cheio de bem e mal. Para a maior parte dos eternos afetos humanos, aspirações e medos são exatamente o que parecem ser. A religião não é uma neurose, na visão de Jung; é uma necessidade humana universal e sentida profundamente.



Jung admite o grande mérito de Freud, acredita que seus métodos funcionam com alguns pacientes, notadamente aos mais jovens com problemas sexuais reais. Mas, diz Jung, Freud e Adler dizem para tudo, “Você não é nada, mas...” Eles explicam ao doente que seus sintomas vêm daqui ou dali e são “nada mais que” isto ou aquilo. A sexualidade, é verdade, é constante e está presente em toda parte; o instinto de poder certamente pode penetrar as alturas e as profundezas da alma; mas a própria alma não é unicamente, uma coisa ou a outra, ou até mesmo as duas juntas. Uma pessoa é apenas metade compreendida quando se sabe como tudo nele surgiu. Apenas um homem morto pode ser explicado em termos do passado. A vida não é feita apenas só de ontens.



A visão de Jung está ganhando cada vez mais respeito entre os intelectuais, clérigos, pessoas comuns. Está sendo refletido também entre os analistas*. A maioria dos analistas são freudianos dedicados que executam a sua profissão como uma espécie de loja fechada e destituem Jung como um escapista das duras realidades da vida. Mas há uma fragmentação constante: além dos junguianos e adlerianos, há todo um espectro de desviacionistas - seguidores de Karen Horney, Otto Rank, Erich Fromm, Harry Stack Sullivan, Franz Alexander, Melanie Klein. Há também mais e mais ecléticos que obtêm a maior parte de sua teoria de Freud, mas adicionam um pouco de Jung ou Adler ou uma pitada de Horney e Sullivan. Muitos deles hoje em dia admitem que a análise freudiana pode ter sido estreitamente embasada em impulsos sexuais, e que outras questões - até mesmo a religião - talvez possam ser  consideradas. Escreve Milton Sapirstein, analista da escola freudiana: “Cada vez mais, os psiquiatras parecem dispostos a aceitar as dependências da religião, causas sociais e movimentos de grupo como algo saudável e necessário, sem rotulá-los ‘a homossexualidade sublimada’ para uma figura paterna, ou um desejo de voltar ao ventre da mãe”.



Freud foi o Colombo que descobriu o hemisfério do inconsciente. Jung pode muito bem ser o Magellan a circunscrever toda a esfera da psique. [N.T. Ferdinand Magellan ou Fernão de Magalhães foi um explorador português que organizou a expedição espanhola para as Índias Orientais, que resultou na primeira circunavegação da Terra.]



DUPLO INCONSCIENTE



Na hipótese de Jung, a mente tem três camadas: 1) o consciente, que é apenas sobre o que todo mundo pensa que é; 2) o inconsciente pessoal (o que corresponde, mas apenas aproximadamente, para o inconsciente de Freud), em que ficam fatos esquecidos e material emocional reprimido; e 3) o inconsciente coletivo, que faz parte do patrimônio de toda a raça humana, e, portanto, uma espécie de piscina comum contendo os instintos e alguns padrões de comportamento mental.



O que dirige a máquina psíquica? Libido, diz Jung, mas ele usa a palavra de forma diferente de Freud: a libido de Jung inclui toda a energia psíquica. Ela pode fluir, diz Jung, em qualquer dos dois sentidos, em qualquer uma das duas dimensões. Quando ela está fluindo para a frente, do inconsciente para o consciente, um homem sente que sua vida está funcionando perfeitamente como ele conduz os seus negócios. A energia psíquica também deve fluir em sentido inverso, a partir do consciente para o inconsciente, como quando um homem relaxa de um estado ativo a um estado pensativo ou sonhador. Mas se este fluxo para trás dura muito tempo, a libido está sendo atraído por algo no inconsciente que está movendo-se em direção à consciência. Se isso não for feito de forma consciente, ela vai atrair em torno dela material similar que, então, forma um nó ou complexo.



A energia psíquica também pode fluir para dentro ou para fora. No caso de um indivíduo em que normalmente vai para fora, ele é um extrovertido. Quando ele percebe um objeto ou situação, sua primeira reação é projetar a sua energia para o objeto e para longe de si mesmo. Mas se ela flui para dentro, ele é um introvertido, e sua primeira reação é pensar algo do tipo “O que isso vai fazer comigo?”



Jung, em seguida, divide os tipos de personalidade em quatro classes, dependendo de qual das principais funções psíquicas as pessoas apresentam mais fortemente: sensação, pensamento, sentimento ou intuição. Qualquer um pode ser extrovertido ou introvertido em combinação com qualquer uma das quatro funções principais, Jung reconhece oito tipos básicos de personalidade. Mas ele tem dito repetidamente - infelizmente para o dogmatismo radical de conversas de coquetéis - que todo mundo é composto de uma mistura de modo que os rótulos são apenas um guia. Na verdade, existem algumas raras almas que desafiam a classificação em tudo.



ARQUÉTIPOS PARA TODOS



As coisas não são tão simples no inconsciente junguiano. Lá, Jung vê uma série de símbolos que representam os arquétipos. Ao escrever sobre eles, Jung, que tem um estilo vívido e imaginativo, às vezes soa quase como se estivesse escrevendo sobre seres vivos. Mas os arquétipos junguianos são simplesmente padrões e sentimentos antigos da experiência humana, repetidos várias vezes em todas as épocas e culturas. Eles ocorrem em duas formas principais: 1) em pensamentos individuais, sonhos e visões; 2) projetados como mitos, costumes ou crenças.



Quando Jung começou como um analista praticante, ele encontrou diversas vezes que antigos símbolos e rituais foram repetidos nos sonhos de pacientes do século 20 que não poderia ter ouvido ou lido sobre eles. Ele concluiu que o inconsciente coletivo da humanidade 1) é anterior à evolução da parte consciente da mente, e 2) forma os mesmos padrões básicos repetidamente. Em cada indivíduo, é claro, os padrões são dispostos de forma diferente. (Jung compara esta com o corpo, que é constituído pelos mesmos órgãos em todos os seres humanos, mas com variações individuais significativas).



Normalmente, a persona é classificada como o arquétipo mais aparente, embora pertença em grande parte a consciência. Esta foi a palavra dos atores romanos para a máscara que eles usavam para indicar seu pretenso caráter, e Jung o utiliza com o mesmo sentido: a face que cada indivíduo apresenta para o seu ambiente. Trata-se de um necessário e saudável jogo de atuação, facilitando as relações entre o mundo interior do homem e o mundo ao seu redor. A persona é prejudicial apenas quando se domina a verdadeira personalidade abaixo.



Um perigo, então, é que a persona pode cegar um homem para a existência de sua própria sombra. Esta sombra, parte do inconsciente pessoal, é o Mr. Hyde em cada Dr. Jekyll, o elemento inferior ou maligno que quer fazer o que o consciente ou a consciência proíbem. Isso é necessário para controlar a sombra, mas existe o perigo: quanto mais firmemente estiver estampada sobre a pessoa, maior será a força com a qual ela acabará por entrar em erupção.



ANIMA, MÃE-TERRA & SELF



Profundamente no inconsciente coletivo, Jung vê a anima, uma forma de personificação do “princípio feminino” no homem. Por este termo, Jung considera todos os traços que no homem convencionalmente consideram-se femininos, por exemplo, gentileza e apreciação das coisas boas, mas também mesquinhez e raiva. Mais importante, a anima também permite ao homem “apreender a natureza das mulheres” - é a imagem inconsciente do que uma mulher deveria ser. Isso pode variar de Helena de Tróia para Ela de Rider Haggard, uma atriz ruiva de cerca de 20 anos de idade com quem um professor universitário idosos foge. A anima, explica um discípulo Jung, “tem atributos que aparecem e reaparecem através dos tempos. Ela sempre parece jovem, embora muitas vezes sugira ter anos de experiência. Ela é sábia, mas não tão formidável assim; é por vezes ‘algo estranhamente significativo’ - algo como um conhecimento secreto se apega a ela.” “Quando essa imagem é projetada em uma mulher de carne e osso, um homem se apaixona, mas o problema surge quando ela não consegue se encaixar em seu projeto pré-fabricado inconsciente.



O correspondente da anima no sexo feminino é o animus, a personificação de todas as características do sexo masculino em uma mulher, e sua imagem do homem coletiva, que é herdada.



Outros arquétipos mais importantes são o velho sábio e a terra-mãe. O velho sábio pode aparecer em sonhos ou fantasias como um rei ou herói, homem da medicina, mágico ou salvador (para os pacientes do Dr. Jung, muitas vezes ele aparece como o Dr. Jung). Um pouco disto, Jung afirma, é bom: todo homem tem em si as sementes de grandeza; e é bom para ele estar ciente disso. Mas um homem anormalmente receptivo à ideia pode se transformar no líder de uma seita revivalista de olhos arregalados, com delírios messiânicos, ou um Hitler, ou simplesmente um Napoleão de hospício.



O arquétipo feminino correspondente é a terra-mãe - a própria fonte da vida. Mas se uma mulher se torna "inflada" com a ideia, e vê-se dotada de uma capacidade incomparável para a compreensão dos problemas dos outros, ela pode se tornar uma super-benfeitora, ou apertar seu círculo de influência maternal até que estrangule os objetos de sua devoção.



Finalmente, elevando-se sobre uma série de arquétipos menores, há o Self transcendente. Este incorpora elementos de ambos, consciente e inconsciente, a partir de todos os arquétipos, bons e maus. É um símbolo de unidade, como é encontrado em muitas religiões, por exemplo, o Atman hindu.



O conceito de Self de Jung conduz para um processo muito importante que ele chama de individuação. Este é o tipo de inteireza que Jung encontrou muitos de seus pacientes buscando inconscientemente depois que eles, na verdade, tinha sido curado de uma neurose. Individuação pode ser uma tarefa para toda a vida (“Normalmente o analista morre antes do paciente”, diz um analista junguiano). Ao conhecer mais e mais aspectos de seu inconsciente, o sujeito pode atribuir valores adequados para os impulsos que já foram meio detectados e que são perturbadores. A individuação é “encontrar o Deus interior”.



A NECESSIDADE DE SÍMBOLOS



Neste processo, os símbolos ajudam. Um que particularmente fascina Jung é o mandala**, um padrão quadrado e circular que contém o número de quatro ou um múltiplo dele. A pedra preciosa, muitas vezes equiparada com a pedra filosofal dos alquimistas, pode simbolizar o Self. O entendimento da figueira como Árvore da Vida é muitas vezes visto como uma única flor luminosa - talvez a Flor de Ouro oriental, ou uma estrela de árvore de Natal - que significa que o caminho da vida é a própria vida.


Que lugar tem tais símbolos na psicologia moderna? Diz Jung: são fatos. Eles aparecem dia após dia nos sonhos e rabiscos de pacientes. Se, por exemplo, um paciente sonha com uma cobra indo em direção ao céu, um analista freudiano vai chamá-lo automaticamente de um símbolo fálico. Jung admite que pode significar isso. Mas é também um fato que a serpente tem um significado muito amplo. Por exemplo, para os ofitas gnósticos (século 2 d.C.) a serpente simboliza o princípio redentor do mundo. Os símbolos pode servir, diz Jung, para o reconhecimento do lado sombrio da vida, trazendo para fora o mal dando-lhe uma abertura. Argumenta Jung: Por que não testar a hipótese de que podem representar uma mesma urgência em um paciente moderno? Além disso, diz Jung, os pacientes são muitas vezes impactados com a aparição de tais símbolos em suas mentes, e temem que eles sejam sinais de proximidade com a insanidade, ficam mais tranquilos quando acreditam que eles estão apenas repetindo padrões humanos antigos.



Em uma era religiosa, de acordo com Jung, o homem não precisa estar conscientemente familiarizado com seus arquétipos, porque a religião oferece seus próprios símbolos. Mas o cristianismo tornou-se tão enfraquecido a este respeito - em grande parte através da Reforma Protestante, diz protestante Jung - que para milhões seus símbolos agora não significam nada. Por esta razão, diz Jung, o catolicismo romano é geralmente mais eficaz hoje do que outras igrejas, e ele raramente encontra católicos na necessidade de individuação. Diz Jung: “[Catolicismo] é uma religião de pleno direito. O Protestantismo não é. Religiões consistem de uma doutrina e um rito. O ritual não existe no Protestantismo: que tem apenas uma perna para se sustentar - a justificação pela fé somente. A Igreja Católica tem o rito também, com todos os seus efeitos mágicos. “O próprio Jung não foi à igreja durante anos, mas quando perguntado se acredita em Deus, ele diz: "Eu não poderia dizer que eu acredito. Eu sei! Eu tive a experiência de ser agarrado por algo que é mais forte do que eu, alguma coisa que as pessoas chamam de Deus”.



Inconscientemente, pelo menos, diz Jung, muitos homens modernos procuram o conforto e segurança de símbolos religiosos. É por isso que muitos tentam importar religiões orientais estranhas; outros se voltam para demagogos e ismos (que Jung considera como erupções vulcânicas do inconsciente), e outros ainda vão para o analista. “Nosso coração brilha, e uma inquietação secreta tortura as raízes do nosso ser”.  “Lidar com o inconsciente tornou-se uma questão de vida para nós.” Por isso, o homem que não consegue encontrar os símbolos religiosos deve ser ajudado pelo analista para entender os símbolos em seu próprio inconsciente. “Eu tratei de muitas centenas de pacientes. Entre [estes] na segunda metade da vida - isto é, mais de 35 anos - não houve um cujo problema em última instância não era o de encontrar uma visão religiosa na vida”.



SONHO COM UM PASSEIO DE CARROÇA



As diferenças práticas entre os métodos de Freud e Jung mostram-se claramente no caso de um empresário de sucesso que foi a um analista junguiano para obter ajuda. Aos 51 anos ele tinha desenvolvido uma fobia contra viagens de trem ou de avião, e expressou uma incontrolável ansiedade e ataques de vertigem.



Apesar da idade do paciente, o psicanalista freudiano ortodoxo teria colocado ele em um divã e convidado para falar em “livre associação”, especialmente sobre a sua mais tenra infância. Objetivo: encontrar qualquer trauma específico relacionado com a sua vertigem, ou algum estresse emocional reprimido.



O analista junguiano não usa divã, mas tem o paciente sentado em uma cadeira e de frente para ele. Esta instalação representa um encontro de iguais: ao contrário de Freud, que queria manter o analista em segundo plano*†, Jung acredita que o médico deve partilhar plenamente a experiência emocional da análise.



O analista junguiano está preocupado principalmente com o presente e o futuro. Este empresário carregava uma carga muito pesada de trabalho por anos. Agora, a partir de seu inconsciente, surgem sintomas que o forçam a reduzir suas atividades. Inconscientemente, ele deve querer desacelerar. Para ajudar o analista a encontrar possíveis motivos inconscientes, o empresário é convidado a falar sobre o seu trabalho e viagens (isto não é livre associação, que, Jung argumenta, tende a levar para longe do foco de interesse).



Depois de várias sessões, o empresário fala de um sonho: “Eu estou sentado em uma grande carroça, carregada de feno, que eu estou dirigindo de volta para o celeiro, mas a carga de feno é tão alta que a verga da porta do celeiro bate-me na cabeça, de modo que eu caio do meu assento e acordo apavorado com o ato de cair”. Para os freudianos, o celeiro é um símbolo dos órgãos genitais femininos; o sonho representa uma tendência a voltar para o útero, porque isso tem conotações de desejo incestuoso, que seria seguido por castigo (castração). Um adleriano interpretaria a carroça sobrecarregada como uma vontade exagerada de poder, em compensação a um complexo de inferioridade.



O analista junguiano toma o sonho mais literalmente. Depois de examiná-lo e reexaminá-lo no contexto de vida do paciente (Jung desconfia de todas as teorias do sonho), o analista sugere este significado: o paciente tem sobrecarregado sua carroça além de sua capacidade; como resultado, suas intenções conscientes recebem um golpe. O sonho é uma tentativa do inconsciente para restabelecer o equilíbrio de uma atitude extrovertida exagerada que está se tornando cada vez menos adequada à medida que o empresário envelhece.



Esta interpretação nega ao paciente a maneira freudiana mais fácil - um trauma de infância para usar como bode expiatório. Ele enfrenta a responsabilidade de rever seus objetivos na vida. Neste caso, o empresário percebeu que tinha vivido uma vida unilateral. Não apenas ficou mais lento, mas ele estava satisfeito em fazê-lo - e poderia fazer viagens sem ansiedade ou sofrer de tontura.



Junguianos costumam dizer que depois que um paciente foi curado de uma neurose em análise freudiana, a sua “alma foi esterilizada”. Diz Jung: “A neurose contém a alma da pessoa doente, ou pelo menos uma parte considerável dela, e se a neurose pode ser retirada como um dente cariado, na maneira racionalista, então, o paciente teria ganhado nada e perdido algo muito importante, tanto como um pensador que perde sua dúvida da veracidade de suas conclusões, ou um homem moral que perde suas tentações... o indivíduo [deve] escolher o seu próprio caminho conscientemente e com a decisão moral consciente”.



PAIS & FILHOS



Um dos problemas do homem moderno, de acordo com Jung, é que ele perdeu contato com suas raízes. Os americanos, por exemplo, ele acredita que ainda não estão em casa em seu inconsciente, estão em um continente deturpado tão recentemente afastado da natureza; isso produz tensão e ajuda a explicar a geração de energia da América*‡. O próprio Carl Jung não está preocupado com a falta de raízes. Ele vem de uma longa linhagem de pastores da Igreja Reformada suíça. Embora ele tenha viajado por todo o mundo, da Índia (onde lecionou) ao Quênia (onde viveu com uma tribo primitiva perto do Monte Elgon), a casa de Jung é a mesma casa que ele e sua esposa Emma construíram em 1908.



Ele teve uma infância solitária em Basileia, começou a aprender latim aos seis, e tornou-se o que viria a classificar como “um tipo introvertido com a função pensamento dominante”. Sua primeira ambição era tornar-se um arqueólogo ou paleontólogo. “Ele ainda está emocionado com a notícia de uma escavação”, diz um discípulo. “Mas nós carregamos história dentro de nós, também, e ele cavou-a lá em cima”.



Em grande parte para agradar seu pai, Jung escolheu medicina. Ele logo ficou fascinado com a psiquiatria. Em 1900, recém-formado, o Dr. Jung foi para Zurique como assistente em uma clínica mental famosa de uma antiga universidade. Após descobrir os escritos de Freud, Jung concebeu testes de associação de palavras que foram saudados como prova da teoria básica de Freud da repressão. Jung e seu chefe, o Dr. Eugen Bleuler, deram às teorias freudianas um prêmio tão ansiado de respeitabilidade pela prestigiada clínica de Zurique. Em 1907 Jung foi para Viena para passar duas semanas com o mestre. “No primeiro dia que conversamos por 13 horas”, lembra ele. “Nós conversamos sobre tudo. Mas eu não conseguia engolir o chamado positivismo da ciência, seu ponto de vista meramente racional da psique e seu ponto de vista materialista”.



Mais tarde, cruzaram o Atlântico juntos em seu caminho para a Universidade Clark, em Worcester. Freud e Jung debateram interminavelmente sobre problemas psicológicos e analisaram os sonhos um do outro. Freud lançou Jung no papel de seu filho e herdeiro intelectual. Mas os dias agradáveis tinham acabado. Em Munique, em 1912, Freud censurou Jung por escrever sobre a psicanálise sem mencionar o nome de seu fundador. A conversa voltou-se para o rei do Egito Amenhotep IV como fundador de uma religião. “Ele é o único que riscou o nome de seu pai sobre os monumentos”, disse Freud”. ”Sim”. Jung respondeu, “mas você não pode descartar Amenhotep. Ele foi o primeiro monoteísta entre os egípcios. Ele foi um grande gênio, muito humano, muito individual. Ele ter riscado o nome de seu pai não é a questão principal de todas”. Diante disso, Freud desmaiou. A explicação de Jung: “Indiretamente, ele continuava a sua censura que eu tinha riscado o nome do pai - isto é, o nome dele”.



Quando Jung negou a natureza predominantemente sexual da libido, Freud entendeu como uma rebelião aberta. Por volta de 1913 o rompimento foi total: Jung escreveu: “eu não poderia fazer nenhum trabalho adicional com ele se ele não desistisse dessa atitude dogmática”. Freud disse: "Nós resolvemos deixar um ao outro sem sentir a necessidade de se encontrar novamente!”



O ALQUIMISTA



Uma das questões mais controversas sobre Jung – fora da psiquiatria - diz respeito a Alemanha nazista. Alguns de seus escritos sobre a raça foram usados por outras pessoas para propaganda racista. Principalmente porque ele ocupou a direção de uma revista psicanalítica alemã durante o regime nazista (seu co-editor na época era um parente de Hermann Göring), Jung as vezes tem sido acusado de simpatizar com nazistas. A posição de Jung: como um estrangeiro de renome, ele simplesmente assumiu o cargo de salvaguardar o que podia da psiquiatria alemã.



Desde a guerra, Jung viveu às margens do Lago de Zurique, tratando de alguns pacientes e mantendo um olhar atento sobre o paciente mais difícil de todos - o mundo em geral. Ele nunca parou de escrever, rever seus conceitos, ou alargar o escopo dos seus inquéritos. Ele explorou a alquimia medieval, não porque ele tivesse interesse em seus aspectos pseudo-químicos, mas porque ele considera interessante psicologicamente: para a maior parte, ele vê os alquimistas como buscadores da experiência religiosa original, a margem dos limites admissíveis pela igreja medieval.



A maioria dos pacientes de Jung foram mulheres, e ele teve algumas coisas pé no chão a dizer sobre o status da mulher no mundo moderno. Ela tem, pensa ele, perdido o antigo ideal de casamento (“Ele será o teu mestre”). A tradição de que é o homem que geralmente rompe um casamento não é mais verdade: “Hoje a vida torna tais exigências sobre o homem, como o nobre fidalgo Don Juan, não mais vistas em nenhum lugar exceto no teatro. Mais do que nunca, o homem ama o seu conforto, já não existe um excedente de energia para explorar o mundo e duelos”. A mulher, por sua vez, demora mais tempo do que nunca para encontrar um marido, “pelo desejo tranquilo e obstinado de que funcione. Magicamente, como o olho fixo da cobra”. Como homens e mulheres adotam mais das funções e interesses tradicionalmente atribuídas ao outro sexo, Jung acredita que uma nova relação entre eles está em desenvolvimento, com base na igualdade e parceria.



Recentemente, em Resposta a Jó (acaba de ser publicado na Inglaterra, ainda não nos EUA), de repente ele abordou a proclamação papal do dogma da Assunção da Virgem em 1950, que ele considera o maior evento religioso desde a Reforma. Sua explicação do dogma: era, ele afirma, histórica e psicologicamente necessário, porque a massa de mulheres católicas romanas (pelo menos inconscientemente) exigia, para dar-lhes um símbolo de identificação no céu.



DÚVIDAS FREUDIANAS



Quão grande é a influência de Jung hoje? Os freudianos, confiantes de que eles são os donos da verdade psiquiátrica revelada, travam uma cruzada para seu próprio dogma e procuram convertidos com zelo evangélico. Jung, pelo contrário, por um longo tempo não teria sequer se preocupado em criar uma escola de formação para os analistas que queriam segui-lo, e ele ainda se recusa a buscar convertidos. Proselitismo, em seu livro, é apenas um reflexo de dúvidas inconscientes. Até 1948 era um único Instituto C. G. Jung com sede em Zurique, e Jung deu-lhe pouco mais de apoio do que o seu nome. Ele agora tem cerca de 100 alunos de 14 países, incluindo os EUA, Dinamarca, Índia. Londres, Nova York, São Francisco e Los Angeles são os próximos grandes centros de influência junguiana; em cada um há um punhado de analistas treinados pelo próprio Jung ou por seus primeiros discípulos. São Francisco tem um pequeno instituto de formação, e um está sendo criado em Los Angeles. A Fundação Bollingen* está trazendo suas obras completas (quatro volumes publicados, 14 por publicar).



A influência de Jung na prática psiquiátrica, embora muitas vezes não reconhecida, foi concedida pelo falecido A. A. Brill, o principal dos freudianos americanos, que o chamou de “o psicanalista pioneiro em psiquiatria”. Freud acreditava que a análise foi útil apenas nas formas mais leves da doença emocional (neurose). Jung foi um dos primeiros a usá-lo para interpretar a esquizofrenia, a mais comum das psicoses mais graves (que preenche 300.000 leitos hospitalares nos EUA).



Os resultados do tratamento precoce na análise foram apenas tentativas. Mas então veio a insulina e o metrazol, e agora, nos últimos dois anos, vieram duas novas drogas, clorpromazina e reserpina, que estão fazendo milhares de casos supostamente sem esperança de esquizofrenia acessíveis às técnicas analíticas.



A FACE NATURAL



O valor final das ideias de Jung ainda não pode ser medido pelos padrões práticos. Sua grande conquista é que ele tem mostrado à psicologia uma nova direção: ele fez uma psicologia para os seres humanos que caminham em direção ao desconhecido, o intangível, o espiritual. Ele atacou a meta de ajustamento psicológico, o que é bom “para o êxito, para todos aqueles que ainda não encontraram uma adaptação”, mas que, para outros significa apenas “restrição ao leito de Procusto, o tédio insuportável, esterilidade infernal, e desesperança”. Mesmo ele sendo apenas a metade direita, Jung sugeriu à humanidade uma forma de "ajuste" não apenas para seus instintos animais e pressões sociais, mas para seus grandes paradoxos e suas necessidades religiosas eternas. [N.T. Na mitologia grega, o gigante chamado Procusto convidava as pessoas para passarem a noite em sua cama de ferro. Mas havia uma armadilha nesta hospitalidade: ele insistia que os visitantes coubessem, com perfeição, na cama. Se eram muito baixos, ele os esticava; se eram altos, cortava suas pernas.]




Vivendo feliz em sua antiga casa, cercado por 19 netos e dois bisnetos, o velho parece a muitos de seus seguidores o caso mais convincente em apoio as teorias junguianas. Terá conseguido Jung a individuação? Diz ele: “Individuação significa tornar-se o que se está realmente pretendendo ser. No Zen Budismo eles têm um ditado que diz: “Mostre seu rosto natural. Eu acho que eu tenho mostrado meu rosto natural, muitas vezes, para espanto do meu tempo. Sim, eu atingi a individuação – graças ao céus! Caso contrário, eu seria muito neurótico, você sabe”.



* Freud e seus seguidores sempre insistiram que o nome "psicanálise" pertence apenas a sua teoria e método. Adler chamou de “psicologia individual”; a de Jung é “psicologia analítica”.



** O mandala, significa círculo mágico em sânscrito, é mais conhecido como uma ajuda para a contemplação entre os budistas e outras seitas orientais. O mandala cristão medieval mostra Cristo no centro, com os quatro evangelistas nos pontos cardeais.



*† Disse ele: “Eu não posso deixar-me encarar durante oito horas por dia”.



*‡ Uma vez um analista de Zurique teve de lidar com uma nova paciente tão tensa que parecia que ela não tinha mera neurose, mas uma psicose começando. Alarmado -  porque a análise nesta fase pode desencadear uma crise psicótica o analista procurou Jung para aconselhamento. O mestre ouviu os sintomas e, em seguida, perguntou: “Americano? Do Centro-Oeste?” O analista assentiu. “Bem, então, eu acho que você está bastante seguro”, disse Jung, “mas eu me preocuparia se fosse um europeu”.



* Instituído pelo seu admirador americano Paul Mellon de Pittsburgh, e nomeado como a pequena construção de Bollingen no Lago de Zurique, onde Jung passa muitas férias e períodos de meditação.