domingo, 1 de março de 2015

Quatro "Contatos com Jung"



Michael Fordham, o eminente analista médico entre os junguianos britânicos e um dos coordenadores das Obras Completas, organizou Contact with Jung (Londres, 1966), uma coletânea de “ensaios sobre a influência da obra e personalidade de Jung” por 42 discípulos de Jung na Europa, Inglaterra, Estados Unidos e Israel. Foram escolhidos excertos de quatro recordações vívidas e imediatas, as quais atam desde finais da década de 1930 até finais da de 1950.

A. I. Allemby (Oxford)

Tive o primeiro contato com Jung depois do final da segunda guerra mundial. Escrevi-lhe então, e disse-lhe quem era e o que estava fazendo, o que incluía a preparação de uma tese sobre psicologia da religião. Com a sua resposta, Jung enviou o manuscrito de seu ensaio sobre a Trindade¹ – uma nova versão que ainda não fora publicada. Foi uma atitude deveras generosa de sua parte, e uma cativante prova de encorajamento para o completo estranho que, nessa época, eu era para ele. Somente cerca de um mês antes de sua morte voltei a receber uma carta de Jung, em resposta a uma minha, na qual ele abordou com grande cuidado todas as questões que eu levantara. E terminava com estas palavras: “Os meus melhores votos de êxito para quaisquer novas descobertas que possa fazer.”
Essa é a primeira característica que nos impressiona em Jung: o seus respeito pela outra pessoa, seja ela quem for, e seu interesse sincero pelo valor individual de cada um. Quando o fui visitar pela primeira vez em Künsnacht, eu estava cheio de apreensões sobre como me comportaria no encontro com o grande homem – mas no momento em que entrei na intimidade de seu pequeno e acolhedor gabinete de trabalho senti-me completamente à vontade.
Certa vez, quis fazer-me entender que uma pessoa não deve sentir-se culpada a respeito de eventos que ocorrem por sua própria conta. “São como atos de Deus”, disse ele. “Pense neles como se um edifício tivesse sido atingido por um raio; também isso é um ato de Deus. Havia uma igreja numa aldeia suíça que tinha sido danificada por um raio, e o pastor percorreu a aldeia a fim de recolher donativos para os necessários reparos; um velho e esperto aldeão disse-lhe: ‘O que? Você não me vai convencer a soltar um tostão sequer, se Ele destrói a sua própria casa!’ Esse homem estava certo”, disse Jung, soltando uma gargalhada.
Numa outra ocasião, Jung explicou-me o que acontece quando uma pessoa não confia em seus próprios sentimentos e se recusa a agir de acordo com eles. Você pode ver da janela o meu abrigo de barcos, à beira do lago”, disse ele. “Tempos atrás, fui nadar um pouco e depois deitei-me na varanda do abrigo para secar ao sol. O nível do lago estava tão alto que o abrigo ficou cercado de água. Apareceu então o meu cão, à minha procura. Não me podia ver e não tinha a certeza se eu estaria no abrigo ou não. Estando numa disposição algo covarde e não muito afeiçoado à água, o cão meteu primeiro uma pata no lago, retirou-a, depois a outra pata e retirou-a também. Ficou assim por algum tempo. Finalmente, eu fiz um leve ruído, e o cão lançou-se à água e galgou os degraus do abrigo num abrir e fechar de olhos. O cão está condicionado pelo instinto e não tem força de vontade própria, exceto quando um ruído do dono a desencadeia.” Jung, é claro, queria mostrar-me, embora deixasse para mim extrair as conclusões, que uma pessoa que não confia em seus próprios sentimentos ou pensamentos, e não utiliza a sua vontade para os pôr à prova, dificilmente se distinguirá de uma animal; como ser humano consciente, quase não existe.
De uma outra vez, Jung voltou a discorrer sobre o problema da falta de autoconfiança, usando um novo exemplo a título ilustrativo: “As nossas necessidades e os nossos desejos estão sempre ativos”, disse ele. “Os problemas ocorrem somente se eles estão ativos no inconsciente, se nós não os dominamos conscientemente, para lhes darmos uma forma e uma direção definidas. Se nos recusarmos a fazer isso, somos arrastados por eles e tornamo-nos suas vítimas. Eles são, nesse caso, como um trenó deslizando montanha abaixo na neve, sem ninguém controlando os freios. Temos que nos colocar firmemente no controle, não ficando de olhos fechados no banco traseiro ou, pior ainda, relutantes em entrar no trenó para a viagem; isso apenas serve para nos deixar em pânico. As nossas energias inconscientes impulsionam a nossa viagem através da vida e, se guiarmos a nossa própria rota, as nossas ações terão força; poderemos até sentir que Deus está atrás de nós”.
Contou-me que conheceu certa vez um homem distinto, um quacre, que não podia imaginar ter cometido em toda a sua vida alguma coisa errada. “E sabe o que aconteceu a seus filhos?”, perguntou Jung. “O filho tornou-se um ladrão e a filha uma prostituta. Como o pai não assumia a sua sombra, a sua cota na imperfeição da natureza humana, seus filhos foram compelidos a viver o lado negro que ele tinha ignorado.”
Lembro de ouvir Jung afirmar, numa ocasião: Cada ser humano é inerentemente uma forma única e individual de vida. Ele é feito assim. Mas existe algo que o homem pode fazer acima do material que lhe é dado pela natureza, e é que pode tornar-se consciente daquilo que faz dele a pessoa que é, e pode trabalhar conscientemente no sentido de relacionar o que ele mesmo é com o mundo à sua volta.” E, acrescentou Jung, meditativo, “isso talvez seja tudo o que podemos fazer.”
Numa outra ocasião, disse-me como se estivesse falando para si mesmo: “É assim que você deve viver – sem reservas, seja no dar como no recusar, de acordo com o que as circunstâncias requeiram. Então você chegará ao seu destino a são e salvo. No fim de contas, se você mesmo assim encalhar, há sempre a enantiodromia do inconsciente, a qual abre novos caminhos quando a vontade consciente e a visão fracassam”.

Kenneth Lambert (Londres)

Um modo de expresser uma dívida pessoal para com Jung é recordar certas experiências pessoais que registramos dele em ação como pessoa em certos momentos do tempo, comunicando sua experiência a uma outra pessoa – em comparação com Jung, o teórico.  Tenho duas dessas recordações. A primeira é dele em Londres, em 1939, quando respondeu a perguntas que lhe foram apresentadas por um grupo de médicos, psicoterapeutas e eclesiásticos, inclusive um bispo. O resultado foi uma série de dissertações sobre “A Vida Simbólica”,² e acerca da pobreza e potencial neurótico de indivíduos e grupos para quem tal experiência era desprovida de significado. Nessa época, a exuberância pessoal e a envergadura física de Jung eram notórias, e vimo-lo pela última vez saindo da reunião, uma expressão de certo humor brincalhão estampada no rosto, de braço dado com o bispo – de braço dado, apesar da comunicação entre eles sobre o tema do símbolo não ter avançado grande coisa.
Onze anos depois, Jung concedeu-me metade de uma manhã para uma entrevista pessoal. Falou com franqueza espontânea e um desembaraçado senso de paradoxo. Recordou o grupo e o bispo, e afirmou que o teólogo estava hoje superado, devido, entre outras coisas à sua incapacidade para entender a projeção. Mas acrescentou: “Sempre tive um sentimento de compaixão pelos pastores religiosos de qualquer credo. Eles têm que enfrentar um problema dos diabos.” Ele tinha participado nisso, é claro, porquanto falou com emoção de seu próprio pai, que “apesar de toda a sua inteligência, tinha sido impotente a respeito de tudo isso – tão limitado e tão fora de contato com a natureza e os sonhos.” De fato, a base intensamente pessoal e histórica da motivação científica de Jung revelou-se quando me mostrou fotografias de seu avô, o médico, e de seu pai, o pastor – testa ampla e sensibilidade na expressão fisionômica. “Eu tive que resolver todo o problema do pai,” disse ele. “Sou sempre impopular... com os teólogos e os médicos... Estou sempre mettant mes pieds sur le plat. Esses coleguinhas  médicos não têm inteligência,” acrescentou ele. “Eles trabalham demais de fora para dentro, ao passo que a psicologia de todo o mundo está fazendo planos cuidadosos para coloca-los num estado em que eles têm de enfrentar-se a si mesmos e à sombra. É a oportunidade que se lhes dá de perceberem e realizarem o próprio eu. Se os pudermos fazer sair de seu buraco, dando-lhes um pontapé no traseiro, estaremos fraudando-os em seu direito de nascimento.” Os mesmos pés foram metidos no prato dos teólogos. Com efeito, Jung enfatizou como o cristianismo forçou as pessoas as pessoas a enfrentarem a sombra, e delineou uma tese por ele desenvolvida para demonstrar que São Tomás de Aquino acreditava realmente ter sido o mundo criado pelo Diabolus. O próprio senso da dificuldade fez Jung contar uma história rabínica de como Deus queria fazer um mundo com sua misericórdia e sua justiça. O problema era que, se ele usasse a sua misericórdia, teria de haver pecados demais, e se usasse sua justiça, seria impossível viver. Assim, misturou as duas e disse: “Oh, como desejo que existisse um mundo!” Jung deu uma estrepitosa gargalhada, e continuou discorrendo sobre o simbolismo vinculado ao Cristo, indicando opostos em sua natureza, como, por exemplo, o Leviatã, o Leão, a Serpente, o Corvo Negro, e sua crucificação entre dois ladrões. Depois, o simbolismo tornou-se astrológico. Jung afirmou que, no nascimento de Cristo, Saturno, o deus maléfico, e Júpiter, o deus benéfico, estavam tão próximos um do outro que eram quase um só astro, ou seja, a estrela de Belém, quando o novo eu, Cristo, bem e mal, nasceu. Depois, Jung associou a isso duas histórias sobre pessoas. Um homem falou a Jung sobre um quacre que parecia ser um homem perfeitamente bom. Onde estava então a sombra dele? Jung indagou sobre a esposa desse quacre. Segundo parece, ela também era perfeita, informou o homem. E os filhos dele? “Ah,” disse o informante, “um deles é um ladrão.” A segunda história dizia respeito a um teólogo sem sombra, mas veio a saber-se que seu filho “andava forjando cheques.” O comentário de Jung foi: “O filho assume a sobra do pai. O pai dele, entende?, estava subtraindo de Deus os seus pecados. Assim, o filho foi punido pelos pecados de que o pai não prestava contas a Deus.”

Renée Brand (São Francisco)

O ano de 1955, no outono. Saímos da sala de estar onde tinha sido servido chá e descemos para o jardim de Seestrasse, 228, em Küsnacht. Dez estudantes do Instituto tinham sido delegados para celebrar com Jung o plantio de uma árvore Ginkgo biloba, que lhe foi oferecida pela passagem do seu 80º aniversário. Formávamos um semicírculo próximo do local escolhido para a árvore, enquanto dois jardineiros começaram cavando o buraco. Entre eles estabeleceu-se um ritmo alternado, acentuado pelas pás que rompiam a terra e o baque surdo da terra ao ser jogada para o lado. Jung estava dando instruções sobre a largura e a profundidade do buraco, preocupado em que as raízes tivessem suficiente espaço. Quando olhei para ele, envolto na luz crua da tarde, Jung pareceu-me subitamente menos vigoroso, seu arcabouço menos poderoso – diferente do que eu vira em minha recente visita, ou mesmo alguns minutos antes durante o chá. Tinha o aspecto de todos os seus oitenta anos e muito frágil, a fragilidade da velhice. Com o choque que me causou essa observação, um crescendo sinistro parecia incorporar-se ao ritmo das pás cavando a terra e jogando-a fora. Irracionalmente , parecia que esse buraco não era para plantar uma árvore, que os dois homens não eram jardineiros mas coveiros. A sensação de morte era tão forte em mim que a cena tornou-se-me intolerável, e ali fiquei imóvel, dominado por uma profunda sensação de impotência e rezando para que tudo aquilo acabasse depressa. De súbito, ouvi Jung dizer em voz alta: “Isto nada tem a ver com a morte. Eles estão plantando uma nova vida.” Ele olhava frontalmente para mim, sem se dirigir a ninguém. Ter o meu pensamento mudo em minha cabeça assim captado e respondido era algo tão desconcertante e assustador que o pânico irracional converteu-se num experiência numinosa.

Elizabeth Osterman (São Francisco)

A pesada porta de madeira maciça em que eu acabara de bater estava encaixada numa espessa parede de pedra que parecia fazer solidamente parte da própria terra. Era a entrada para refúgio de aspecto medieval que Jung tinha construído no campo com suas próprias mãos, ano após ano, em Bollingen, às margens do lago de Zurique. A caminho das ilhas do Egeu, nesta primeira viagem para longe da costa oeste dos Estados Unidos, fiz uma parada na Suíça para esta visita. Saindo da rodovia a uma certa distância da cidade de Rapperswil, atravessei uma vereda que ladeava um denso bosque à retaguarda de um conjunto de muros e torres de pedra. Poucos metros adiante, à minha esquerda, a água do lago vinha lamber suavemente os juncos que orlavam a margem. O sol de junho aquecia a terra empapada de chuva e uma neblina tênue cobria as montanhas distantes.
Enquanto aguardava diante da porta, sentia-me um tanto nervosa, mas fui tranquilizada pelos sons de cortar lenha que vinham de trás do muro... A porta abriu-se e fui convidada a entrar no jardim interior por seu acompanhante doméstico. Aí, mais além de um segundo vão de porta, estava o corpulento octogenário de cabelos brancos, com seu avental verde de operário, sentado atrás do cepo de cortar lenha. Um pouco mais adiante via-se um grande quadrado de pedra esculpido por ele em anos passados, quando Jung estava tentando dar forma às suas concepções emergentes. Senti como se tivesse saído do tempo e penetrado num mundo interior onde tudo era importante, pausado e natural.
Sentamo-nos confortavelmente em cadeiras à beira da água e, durante a tarde, a conversa espraiou-se pela pré-história da terra, as profundezas da psique e as maravilhas da natureza à nossa volta. Em dado momento olhei para o meu relógio e Jung disse: “Não faça caso do relógio. Digo-lhe eu.” Voltou frequentemente ao tema do que o homem está fazendo a si mesmo ao viver de um modo apressado e sem sentido, como acabou por divorciar-se de seu próprio eu. Com espontaneidade e grande simplicidade, disse: “Temos que dar tempo à natureza para que ela possa cuidar maternalmente de todos nós. Eu descobri aqui o modo de viver como parte da natureza, de viver de acordo com o meu próprio tempo. No mundo moderno, as pessoas estão sempre vivendo para que algo melhor aconteça amanhã, sempre no futuro, de modo que não pensam em viver suas vidas. São infelizes. Quando um homem começa a conhecer-se, a descobrir as raízes de seu passado em si mesmo, é um novo modo de vida.”
A força que irradiava desse homem sentado à minha frente era surpreendente. Parecia-me simultaneamente poderoso e simples; real do modo que o céu, as pedras, as árvores e a água em torno dele eram reais. Tudo isso parecia fazer parte de sua própria natureza mas o que tornava a cena ainda mais excitante era ele ter consciência disso.
Uma pancada na porta interrompeu a conversa; o motorista do táxi chegara. Jung comentou: “Foi o que eu disse”. Era tempo de partir.

Notas:

1. “A Psychological Approach to the Dogma of the Trinity”. CW 11; foi originalmente uma aula na Conferência de Eranos, em 1940. A nova versão foi preparada para Symbolik des Geistes (1948).
2. Uma palestra proferida em 5 de abril de 1939, num seminário organizado pela Sociedade de Psicologia Pastoral, publicada como Guild Lecture No. 80 em 1954, e incluída em CW 18. Richard Parsons, bispo de Southwark, foi um dos participantes.


Extraído de McGuire, W.; Hull, R. F. C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, s/d.