sexta-feira, 24 de julho de 2015

A Importância Prática do Inesperado


David L. Hart

Há um princípio aqui ao qual sempre aderi e que poderia ser chamado de respeito pela importância do inesperado. É o princípio segundo o qual a vida em si possui significado que precisa ser considerado e a mente racional pode facilmente tentar controlar, passando a ditar significado e, em consequência, perdendo-o. Jung falava desse princípio em uma de nossas reuniões estudantis na sua casa quando um aluno mencionou um determinado estado psicológico, então perguntou: “Professor Jung, qual é a probabilidade estatística de esse estado ocorrer?” A resposta de Jung foi: “Bem, você sabe, assim que se começa a falar de estatística, joga-se a psicologia pela janela”.

O inesperado é aquilo que ganha uma chance de emergir no trabalho analítico quando um cliente vai à sessão sem nenhum “programa” e diz: “Não tenho absolutamente nada do que falar hoje”. No atual ponto de minha carreira, consigo alegrar-me em meu íntimo ao ouvir tal frase, mas antes ficaria muito ansioso. Alegro-me porque tenho certeza de que algo inesperadamente significativo tem, pelo menos, uma oportunidade de surgir. E é isso que, de uma forma ou de outra, costuma acontecer.

Assim, o processo de individuação poderia ser definido como uma vida vivida conscientemente, o que não é tão simples como parece. Não só as nossas mentes racionais, mas os hábitos de pensamento e ação também contribuem para a inconsciência geral em que a vida pode ser vivida. Para Jung,  ser inconsciente talvez fosse o maior dos males, e por inconsciente ele se referia a algo específico: ser inconsciente do próprio inconsciente. É nele que a consciência precisa focar; do contrário, ter-se-á vivido sem responsabilidade e mesmo sem significado, e Jung acreditava que a vida sem sentido era a mais insuportável de todas.


Extraído de YOUNG-EISENDRATH, Polly; DAWSON, Terence. Compêndio da Cambridge Sobre Jung. São Paulo: Madras, 2011.

domingo, 5 de julho de 2015

A Mente Imortal do Homem


Jung foi convidado pela Clínica Tavistock, em Londres – oficialmente denominada Instituto de Psicologia Médica – a realizar uma série de cinco conferências, que ele proferiu de 30 de setembro a 4 de outubro de 1935, para um público de cerca de duzentos médicos e médicas. Uma transcrição mimeografada dessas conferências circulou particularmente com o título de “Concepções Psicológicas Fundamentais”; somente em 1968 o texto foi publicado como Psicologia Analítica: Sua Teoria e Prática.1 A imprensa de Londres tomou conhecimento da presença de Jung e, durante sua visita, numerosas entrevistas foram publicadas, das quais é digna a do Observer de 6 de outubro de 1935. Ela é aqui resumida. “As gargalhadas do Dr. C. G. Jung podem ser, neste momento, ouvidas em Londres, após um silêncio de dez anos” – assim começa o anônimo repórter, e prossegue descrevendo o enorme bom humor de Jung. “Enquanto ele falava, tornou-se evidente a cisão abrupta entre sua própria teoria e prática psicológicas e as de Freud, de quem ele se separou intelectualmente há vários anos. Até que ponto a cisão é abrupta revela-se numa sentença típica de sua maneira imprevista e epigramática de falar...”
O sexo é um campo de recreação para cientistas solitários.
Tanto se poderia estudar a psicologia da nutrição quanto a psicologia do sexo. O homem primitivo, é claro, tinha instinto sexual, mas estava muito mais profundamente preocupado com a alimentação, onde obtê-la e em que quantidade. Aliás, por que basear a psicologia de um homem em seu ângulo menos favorável?
Quando me ocupo de alguém que é mentalmente desequilibrado, não estou preocupado apenas com uma função de sua mente e de seu corpo. Procuro nele o homem antigo. Procuro localizar os estratos da mente humana desde seus primórdios, tal como um geólogo estuda a estratificação da terra. O medo do homem antigo agachado junto a um riacho está em todas as nossas mentes inconscientes, assim como todos os outros medos e especulações nascidos da experiência do homem através dos tempos. A mente da espécie humana é imortal.
Por exemplo, recordo ter sentido subitamente, durante um abalo sísmico na Suiça, que a terra estava viva, que era um animal. Reconheci imediatamente a antiga crença japonesa de que uma gigantesca salamandra vive no interior da Terra e que os sismos acontecem quando ela dá voltas ao corpo durante o sono.2
Uma paciente minha disse-me certa vez que, sempre que um relâmpago rasgava o céu noturno, ela via um grande cavalo negro. Isso é uma outra ideia primitiva – que o raio era uma perna de cavalo escoiceando para baixo, o cavalo de Odin.3 Se um homem ou uma mulher deixa de poder comunicar conosco, dizemos que ele ou ela enlouqueceu. Mas se eu puder descobrir neles o homem antigo, se puder explicar o grande cavalo negro no relâmpago, então talvez seja capaz de fazê-los comunicarem comigo. Poderei restaurar a ponte – mais facilmente ainda se puder descobrir, através dos sonhos deles, o que está em suas mentes inconscientes.
É por isso que me correspondo não só com cientistas médicos, mas também com estudiosos de religião e mitologia em todas as partes do mundo. É por isso que estou atualmente estudando textos medievais no Museu Britânico. A camada medieval em nossa mente inconsciente é a que está mais próxima da superfície.
O estudo da ciência médica está em transição. As relações entre mente e corpo estão sendo mais plenamente apreciadas. Não que haja algo de novo nisso. Os doutores medievais estudavam sonhos. A medicina oriental baseia-se na psicoterapia – o tratamento de doenças por influência hipnótica.
A psicologia ainda não é, evidentemente, uma parte reconhecida do currículo médico. Há muito entusiasmo, mas também existe muita incompreensão e interpretação errônea. No entanto, eu tenho quatrocentos estudantes em Zurique. E os tribunais criminais chamam-me, como último recurso, se são incapazes de decidir sobre a culpa ou inocência de um suspeito.3a
Dentro de vinte anos, teremos uma organização de psicólogos clínicos diplomados, tal como existe hoje a Ordem dos Médicos.
Está quase pronto. Vou intitulá-lo “Símbolos Oníricos do Processo de Individuação”.4 É sobre o modo como o homem torna-se ele mesmo. O homem é sempre um indivíduo, mas nem sempre é ele mesmo... “Seja você mesmo”, como dizem os americanos.

Notas:
1. E como “As Conferências de Tavistock” em CW 18.
2. Cf. Ibid., § 67 (onde Jung contou a mesma história), n. 17: “De acordo com uma lenda japonesa, o namazu, uma espécie de bagre de dimensões monstruosas, carrega em suas costas a maior parte do Japão e, quando irritado, movimenta a cabeça ou a cauda, provocando assim abalos sísmicos”.
3. Ver Symbols of Transformation (CW 5), p. 277.
3a. Cf. “On the Psychological Diagnosis of Evidence” (orig. 1937), CW 2, §§ 1357 e ss. Jung tinha sido solicitado pelo Tribunal Criminal do Cantão de Zurique, em 1934, a apresentar um parecer de especialista sobre um acusado de homicídio, usando o experimento de associação.
4. A palestra de Jung na Conferência de Eranos, em agosto de 1935, assim intitulada, foi incluída em The Integration of the Personality (1939) e revista mais tarde como Parte II de Psychology and Alchemy (CW 12).

Extraído de McGuire, W.; Hull, R. F. C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, s/d.