sábado, 10 de dezembro de 2016

Jung e a Árvore de Natal



Georg Gerster (n. 1928), depois de doutourar-se em literatura germânica na universidade de Zurique, em 1956, dedicou-se a uma notável carreira como escritor e fotógrafo especializado em assuntos científicos; trabalhou em todos os continentes, incluindo a Antártida. Pouco antes do Natal de 1957, ele entrevistou Jung par o Die Weltwoche (Zurique), e seu artigo foi publicado no dia de Natal. Está ligeiramente condensado aqui. Jung está falando:

Um swami indiano bateu à porta de um chalé no Zürichberg. “Perdoe-me por perturbá-lo”, disse ele ao dono da casa. “Cheguei de Madras e estou realizando um estudo dos costumes religiosos locais na Europa. Talvez o senhor pudesse...” O dono da casa recusou. “Receio que tenha procurado a casa errada. Aqui somos pessoas esclarecidas. É claro que vamos à igreja, pelo menos ocasionalmente, mas como você provavelmente sabe nós, protestantes, não estamos nos melhores termos com o mundo dos símbolos religiosos. Se estava pensando em encontrar aqui alguns costumes religiosos semelhantes aos do seu país, tenho a impressão de que voltará para casa desapontado.” O swami retirou-se de orelha murcha. Mas suponhamos que ele volta mais tarde, digamos, em dezembro, e surpreende o dono da casa no ato de decorar a árvore de Natal. “Mas o senhor afirmou que não tinha costumes religiosos,” disse ele, em tom de censura. “Entretanto, abateu um abeto para deixa-lo secar na sala de estar e cobre-o de pequenas velas que não tem utilidade alguma para fins de aquecimento. Diga-me, isso é prescrito pela sua religião ou pelos textos sagrados?” O dono da casa abanou a cabeça, perplexo. “Não que eu saiba”, respondeu ele. “É uma coisa que sempre se fez...”

Em uma de minhas expedições na África, vivi por algum tempo com uma tribo nas encostas do Monte Elgon, no Quênia. Todas as manhãs, ao nascer do sol, eles saíam de suas cubatas, cuspiam nas mãos e erguiam-nas de palmas voltadas para o sol. Indagados das razões por que faziam isso, não atinavam com uma resposta. Apenas diziam: “É uma coisa que sempre se fez...” Tal ignorância granjeou-lhes o qualificativo de primitivo no julgamento dos brancos.¹ Mas se o nosso amigo indiano publicasse em Madras suas pesquisas entre os habitantes das encostas do Zürichberg, ele teria algumas coisas extraordinárias a relatar. “Embora o neguem, eles praticam o culto de ídolos em forma de coelho, que põem ovos coloridos, e no dia a que chamam Páscoa procuram esses ovos nos jardins, em meio a grande alvoroço e gritaria. Num outro dia a que chama Natal, também praticam o culto de uma árvore iluminada, na qual penduram fitas prateadas, bolas reluzentes e guloseimas. Entretanto, dizem não saber por que fazem isso. São um povo muito obtuso e primitivo.”

A própria existência do mastro enfeitado da festa da primavera, a árvore de maio e o pau-de-sebo, dizem-nos muito acerca da reivindicação cristã da árvore de Natal. Na melhor das hipóteses, foi uma questão de reinterpretação de antigos costumes, assim como a festa da natividade de Cristo foi enxertada nas já existentes festividades da vegetação do meio do inverno. O símbolo da árvore tem uma história muito venerável; o estudioso finlandês Uno Holmberg, que investigou o simbolismo da árvore da vida, chamou-lhe “a mais esplendorosa lenda da humanidade.”² As incontáveis mudanças de significado por que passou o símbolo da árvore ao longo de sua história são prova cabal de sua riqueza e de sua vitalidade. A árvore tem um significado cósmico: é a árvore do mundo, o pilar do mundo, o eixo do mundo. Basta citar a Yggdrasill, o freixo-do-mundo da mitologia nórdica, uma árvore majestosa e sempre verde que cresce no centro do mundo. A árvore, especialmente sua copa, é moradia de deuses. Daí, a árvore da aldeia, na Índia, e a tília da aldeia alemã, em torno das quais os aldeões se reúnem à tardinha; eles sentam-se à sombra dos deuses. A árvore também tem um aspecto maternal. Na mitologia germânica, os primeiros seres humanos, Ask e Embla, originam-se do freixo e do amieiro, como seus próprios nomes indicam. Entre os Yakuts da Sibéria, uma árvore com oito galhos foi o lugar de nascimento do primeiro homem. Foi amamentado por uma mulher cuja parte superior do corpo brotou do tronco dessa árvore. Estas e muitas outras ideias semelhantes não são inventadas, elas simplesmente acudiram à cabeça dos homens em remotas eras. É uma espécie de revelação natural.

Para dar um exemplo. Uma noite, um comissário distrital inglês na Nigéria ouviu uma tremenda balbúrdia nas casernas das tropas nativas. Seis soldados tiveram que algemar um camarada enfurecido. Quando o comissário chegou, o negro jazia quieto e foi solto por sua ordem. Ao explicar seu estranho comportamento, o soldado disse que tinha tentado fugir para ir para casa, porque a sua árvore o estava chamando, mas agora era tarde demais. O comissário veio a saber então que, quando era uma criança pequena, a mãe desse soldado tinha-o colocado certa vez sob uma árvore para descansar enquanto ela trabalhava. A árvore falara com ele e fizera-o prometer que acudiria sem demora toda a vez que a ouvisse chama-lo e lhe levaria alimento. A árvore já o chamara por várias vezes, disse o soldado, e de cada vez ele lhe levara o que havia de melhor em sua miserável cubata. Nessa noite, longe de sua aldeia, ele tinha ouvido a árvore chamá-lo, pedindo comida, mas não pudera obedecer à voz por causa de seus deveres militares. Com frequência, como neste caso, a árvore simboliza o nume, o destino psíquico da pessoa, a sua personalidade interior.³ No sonho de Nabucodonosor, o próprio rei é simbolizado pela árvore. Também existe uma velha ideia rabínica de que, ao envelhecer, foi permitido a Adão das uma olhada no paraíso. Nos ramos da árvore definhada jazia uma criança. Poderíamos mencionar ainda as velhas ideias patrísticas de Cristo como a árvore da vida.

O costume, ainda praticado hoje em muitos lugares, de plantar uma árvore quando nasce uma criança, também pertence a esse contexto?

Certamente. A razão para esse ato ritual é a participation mystique entre homem e árvore; ambos compartilham do mesmo destino.

Voltando à árvore de Natal. Não será que vários conjuntos muito diferentes de símbolos se fundiram num só? A árvore, as luzes, os galhos sempre verdes, as decorações, a distribuição de presentes – tudo isso tem seu próprio valor simbólico e, em numerosos costumes populares tradicionais, alguns dos componentes estão combinados de modo diferente.

Concordo. Mas não esqueçamos que a combinação total, a árvore iluminada e decorada, também é encontrada fora da natividade de Cristo e em contextos não-cristãos. Por exemplo, na alquimia, esse tão conhecido reservatório para os símbolos da antiguidade.

(Nesse ponto, Jung traçou um quadro alquímico da árvore, com o sol, a lua e os sete planetas em seus ramos, cercada por alegorias do processo alquímico de transformação.)

Agora você sabe o que significam os globos reluzentes na árvore de Natal; eles nada mais são do que corpos celestes, o sol, a lua e as estrelas. A árvore de Natal é a árvore do mundo. Mas, como o simbolismo alquímico mostra claramente, é também um símbolo de transformação, um símbolo do processo de auto-realização. De acordo com certas fontes alquimistas, o adepto sobe na árvore – um motivo xamanístico muito antigo. o xamã, num êxtase, sobe na árvore mágica a fim de atingir o mundo superior onde ele encontrará seu verdadeiro eu. Ao subir na árvore mágica, que é, ao mesmo tempo, uma árvore do conhecimento, ele ganha a posse de sua personalidade espiritual. Para o psicólogo, o simbolismo xamanístico e alquímico é uma representação projetada do processo de individuação. Que assenta numa base arquetípica é evidenciado pelo fato de que os pacientes que não têm nem o mais leve conhecimento de mitologia e folclore produzem espontaneamente os mais surpreendentes paralelos com o simbolismo histórico da árvore.4 A experiência ensinou-me que os autores desses quadros estavam tentando expressar um processo de desenvolvimento interior independente de sua volição consciente.

A sua concepção da árvore de Natal não será perturbada, de algum modo, pelo fato de o costume datar apenas do século XVIII?

Por que haveria qualquer objeção ao meu ponto de vista de que a árvore de Natal, que na mais longa e mais escura noite do ano simboliza o retorno da luz, é arquetípica? Pelo contrário! O modo como a árvore de Natal se popularizou em vários países e ganhou rapidamente raízes de forma que a maioria das pessoas acredita realmente ser uma antiquíssima tradição, é apenas mais uma prova de que o seu atrativo tem raízes nas profundezas da psique, no inconsciente coletivo, e excede amplamente o do presépio – a manjedoura, a vaca e o burro.

Em um de seus livros, o senhor observa que as pessoas decoram a árvore de Natal sem saberem o que está por detrás desse costume. 5

É um velho costume pagão. Não sou eu quem usa essa expressão mas a Igreja. “Omnis haec observatio est paganorum”, disse uma antiga declaração papal com referência à decoração das casas com galhos verdes. Esse e outros costumes semelhantes são pagãos. E J. C. Dannhauer, um teólogo evangélico em Estrasburgo, pregou em meados do século XVII contra os abetos que as pessoas instalam em suas casas no Natal, decorados com velas e bonecos. Esses antigos teólogos não estavam tão errados, de acordo com suas luzes.

Agora que elucidou seus antecedentes como investigador empírico, a crescente popularidade da árvore de Natal deve causar-lhe júbilo como psicoterapeuta. Eu conjecturo que o senhor concordaria em que as árvores de Natal são saudáveis – como uma medida de higiene psíquica?

A sua conjectura é correta. Os arquétipos são, por assim dizer, como tantos pequenos apetites em nós, e se, com o passar do tempo, eles nada obtêm para comer, começam roncando e emborcando tudo. A igreja católica leva isso muito a sério. Neste momento, ele está disposta a reviver antigos costumes pascais. A saudação abstrata “Cristo vive!” já não satisfaz o anseio dos arquétipos por imagens. Assim, para deixa-lo em paz, tiveram que recorrer à deusa-coelha, um símbolo de fertilidade. E, mais recentemente, a igreja reintroduziu uma antiga cerimônia de fogo: a fogueira da Páscoa, o fogo primordial, não é acendida com fósforos mas com pederneira e aço! Um procedimento tremendamente nutritivo para os sentimentos do homem. O homem interior tem que ser alimentado – um fato que os modernos, com sua frívola confiança na razão, esquecem frequentemente, para seu próprio dano. A árvore de Natal é um daqueles costumes que constituem alimento para a alma, nutriente para o homem interior. E quanto mais primordial for o material que eles usam, mais promissores esses costumes são para o futuro.

Notas:
1. Cf. “Archaic Man” (orig. 1931), CW 10, §§ 143 e ss.
2. Der Braum des Lebens (Helsinquia, 1922-23), p. 9.
3. Cf. “The Spirit Mercurius”, CW 13, § 247.
4. Cf. “The Philosophical Tree”, Parte I, CW 13.
5. “Archaic Man”, CW 10, § 145.

Extraído de McGuire, W.; Hull, R. F. C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, s/d.