Georg Gerster (n.
1928), depois de doutourar-se em literatura germânica na universidade de
Zurique, em 1956, dedicou-se a uma notável carreira como escritor e fotógrafo
especializado em assuntos científicos; trabalhou em todos os continentes,
incluindo a Antártida. Pouco antes do Natal de 1957, ele entrevistou Jung par o
Die Weltwoche (Zurique), e seu artigo foi publicado no dia de Natal. Está
ligeiramente condensado aqui. Jung está falando:
Um swami indiano bateu à
porta de um chalé no Zürichberg. “Perdoe-me por perturbá-lo”, disse ele ao dono
da casa. “Cheguei de Madras e estou realizando um estudo dos costumes
religiosos locais na Europa. Talvez o senhor pudesse...” O dono da casa recusou.
“Receio que tenha procurado a casa errada. Aqui somos pessoas esclarecidas. É
claro que vamos à igreja, pelo menos ocasionalmente, mas como você provavelmente
sabe nós, protestantes, não estamos nos melhores termos com o mundo dos
símbolos religiosos. Se estava pensando em encontrar aqui alguns costumes
religiosos semelhantes aos do seu país, tenho a impressão de que voltará para
casa desapontado.” O swami retirou-se de orelha murcha. Mas suponhamos que ele
volta mais tarde, digamos, em dezembro, e surpreende o dono da casa no ato de
decorar a árvore de Natal. “Mas o senhor afirmou que não tinha costumes
religiosos,” disse ele, em tom de censura. “Entretanto, abateu um abeto para deixa-lo
secar na sala de estar e cobre-o de pequenas velas que não tem utilidade alguma
para fins de aquecimento. Diga-me, isso é prescrito pela sua religião ou pelos
textos sagrados?” O dono da casa abanou a cabeça, perplexo. “Não que eu saiba”,
respondeu ele. “É uma coisa que sempre se fez...”
Em uma de minhas
expedições na África, vivi por algum tempo com uma tribo nas encostas do Monte
Elgon, no Quênia. Todas as manhãs, ao nascer do sol, eles saíam de suas
cubatas, cuspiam nas mãos e erguiam-nas de palmas voltadas para o sol.
Indagados das razões por que faziam isso, não atinavam com uma resposta. Apenas
diziam: “É uma coisa que sempre se fez...” Tal ignorância granjeou-lhes o
qualificativo de primitivo no julgamento dos brancos.¹ Mas se o nosso amigo
indiano publicasse em Madras suas pesquisas entre os habitantes das encostas do
Zürichberg, ele teria algumas coisas extraordinárias a relatar. “Embora o
neguem, eles praticam o culto de ídolos em forma de coelho, que põem ovos
coloridos, e no dia a que chamam Páscoa procuram esses ovos nos jardins, em
meio a grande alvoroço e gritaria. Num outro dia a que chama Natal, também praticam
o culto de uma árvore iluminada, na qual penduram fitas prateadas, bolas
reluzentes e guloseimas. Entretanto, dizem não saber por que fazem isso. São um
povo muito obtuso e primitivo.”
A própria existência do
mastro enfeitado da festa da primavera, a árvore de maio e o pau-de-sebo,
dizem-nos muito acerca da reivindicação cristã da árvore de Natal. Na melhor
das hipóteses, foi uma questão de reinterpretação de antigos costumes, assim
como a festa da natividade de Cristo foi enxertada nas já existentes
festividades da vegetação do meio do inverno. O símbolo da árvore tem uma
história muito venerável; o estudioso finlandês Uno Holmberg, que investigou o
simbolismo da árvore da vida, chamou-lhe “a mais esplendorosa lenda da
humanidade.”² As incontáveis mudanças de significado por que passou o símbolo
da árvore ao longo de sua história são prova cabal de sua riqueza e de sua
vitalidade. A árvore tem um significado cósmico: é a árvore do mundo, o pilar
do mundo, o eixo do mundo. Basta citar a Yggdrasill, o freixo-do-mundo da
mitologia nórdica, uma árvore majestosa e sempre verde que cresce no centro do
mundo. A árvore, especialmente sua copa, é moradia de deuses. Daí, a árvore da
aldeia, na Índia, e a tília da aldeia alemã, em torno das quais os aldeões se
reúnem à tardinha; eles sentam-se à sombra dos deuses. A árvore também tem um
aspecto maternal. Na mitologia germânica, os primeiros seres humanos, Ask e
Embla, originam-se do freixo e do amieiro, como seus próprios nomes indicam. Entre
os Yakuts da Sibéria, uma árvore com oito galhos foi o lugar de nascimento do
primeiro homem. Foi amamentado por uma mulher cuja parte superior do corpo
brotou do tronco dessa árvore. Estas e muitas outras ideias semelhantes não são
inventadas, elas simplesmente acudiram à cabeça dos homens em remotas eras. É
uma espécie de revelação natural.
Para dar um exemplo. Uma
noite, um comissário distrital inglês na Nigéria ouviu uma tremenda balbúrdia
nas casernas das tropas nativas. Seis soldados tiveram que algemar um camarada
enfurecido. Quando o comissário chegou, o negro jazia quieto e foi solto por
sua ordem. Ao explicar seu estranho comportamento, o soldado disse que tinha
tentado fugir para ir para casa, porque a sua árvore o estava chamando, mas
agora era tarde demais. O comissário veio a saber então que, quando era uma
criança pequena, a mãe desse soldado tinha-o colocado certa vez sob uma árvore
para descansar enquanto ela trabalhava. A árvore falara com ele e fizera-o
prometer que acudiria sem demora toda a vez que a ouvisse chama-lo e lhe
levaria alimento. A árvore já o chamara por várias vezes, disse o soldado, e de
cada vez ele lhe levara o que havia de melhor em sua miserável cubata. Nessa
noite, longe de sua aldeia, ele tinha ouvido a árvore chamá-lo, pedindo comida,
mas não pudera obedecer à voz por causa de seus deveres militares. Com frequência,
como neste caso, a árvore simboliza o nume, o destino psíquico da pessoa, a sua
personalidade interior.³ No sonho de Nabucodonosor, o próprio rei é simbolizado
pela árvore. Também existe uma velha ideia rabínica de que, ao envelhecer, foi
permitido a Adão das uma olhada no paraíso. Nos ramos da árvore definhada jazia
uma criança. Poderíamos mencionar ainda as velhas ideias patrísticas de Cristo
como a árvore da vida.
O
costume, ainda praticado hoje em muitos lugares, de plantar uma árvore quando
nasce uma criança, também pertence a esse contexto?
Certamente. A razão
para esse ato ritual é a participation mystique entre homem e árvore; ambos
compartilham do mesmo destino.
Voltando
à árvore de Natal. Não será que vários conjuntos muito diferentes de símbolos
se fundiram num só? A árvore, as luzes, os galhos sempre verdes, as decorações,
a distribuição de presentes – tudo isso tem seu próprio valor simbólico e, em
numerosos costumes populares tradicionais, alguns dos componentes estão
combinados de modo diferente.
Concordo. Mas não
esqueçamos que a combinação total, a árvore iluminada e decorada, também é
encontrada fora da natividade de Cristo e em contextos não-cristãos. Por
exemplo, na alquimia, esse tão conhecido reservatório para os símbolos da
antiguidade.
(Nesse ponto, Jung
traçou um quadro alquímico da árvore, com o sol, a lua e os sete planetas em
seus ramos, cercada por alegorias do processo alquímico de transformação.)
Agora você sabe o que
significam os globos reluzentes na árvore de Natal; eles nada mais são do que
corpos celestes, o sol, a lua e as estrelas. A árvore de Natal é a árvore do
mundo. Mas, como o simbolismo alquímico mostra claramente, é também um símbolo
de transformação, um símbolo do processo de auto-realização. De acordo com
certas fontes alquimistas, o adepto sobe na árvore – um motivo xamanístico
muito antigo. o xamã, num êxtase, sobe na árvore mágica a fim de atingir o
mundo superior onde ele encontrará seu verdadeiro eu. Ao subir na árvore
mágica, que é, ao mesmo tempo, uma árvore do conhecimento, ele ganha a posse de
sua personalidade espiritual. Para o psicólogo, o simbolismo xamanístico e
alquímico é uma representação projetada do processo de individuação. Que
assenta numa base arquetípica é evidenciado pelo fato de que os pacientes que
não têm nem o mais leve conhecimento de mitologia e folclore produzem
espontaneamente os mais surpreendentes paralelos com o simbolismo histórico da
árvore.4 A experiência ensinou-me que os autores desses quadros
estavam tentando expressar um processo de desenvolvimento interior independente
de sua volição consciente.
A
sua concepção da árvore de Natal não será perturbada, de algum modo, pelo fato
de o costume datar apenas do século XVIII?
Por que haveria
qualquer objeção ao meu ponto de vista de que a árvore de Natal, que na mais
longa e mais escura noite do ano simboliza o retorno da luz, é arquetípica?
Pelo contrário! O modo como a árvore de Natal se popularizou em vários países e
ganhou rapidamente raízes de forma que a maioria das pessoas acredita realmente
ser uma antiquíssima tradição, é apenas mais uma prova de que o seu atrativo
tem raízes nas profundezas da psique, no inconsciente coletivo, e excede
amplamente o do presépio – a manjedoura, a vaca e o burro.
Em
um de seus livros, o senhor observa que as pessoas decoram a árvore de Natal
sem saberem o que está por detrás desse costume. 5
É um velho costume
pagão. Não sou eu quem usa essa expressão mas a Igreja. “Omnis haec observatio
est paganorum”, disse uma antiga declaração papal com referência à decoração
das casas com galhos verdes. Esse e outros costumes semelhantes são pagãos. E
J. C. Dannhauer, um teólogo evangélico em Estrasburgo, pregou em meados do
século XVII contra os abetos que as pessoas instalam em suas casas no Natal,
decorados com velas e bonecos. Esses antigos teólogos não estavam tão errados,
de acordo com suas luzes.
Agora
que elucidou seus antecedentes como investigador empírico, a crescente
popularidade da árvore de Natal deve causar-lhe júbilo como psicoterapeuta. Eu
conjecturo que o senhor concordaria em que as árvores de Natal são saudáveis –
como uma medida de higiene psíquica?
A sua conjectura é
correta. Os arquétipos são, por assim dizer, como tantos pequenos apetites em
nós, e se, com o passar do tempo, eles nada obtêm para comer, começam roncando
e emborcando tudo. A igreja católica leva isso muito a sério. Neste momento,
ele está disposta a reviver antigos costumes pascais. A saudação abstrata “Cristo
vive!” já não satisfaz o anseio dos arquétipos por imagens. Assim, para deixa-lo
em paz, tiveram que recorrer à deusa-coelha, um símbolo de fertilidade. E, mais
recentemente, a igreja reintroduziu uma antiga cerimônia de fogo: a fogueira da
Páscoa, o fogo primordial, não é acendida com fósforos mas com pederneira e
aço! Um procedimento tremendamente nutritivo para os sentimentos do homem. O
homem interior tem que ser alimentado – um fato que os modernos, com sua
frívola confiança na razão, esquecem frequentemente, para seu próprio dano. A
árvore de Natal é um daqueles costumes que constituem alimento para a alma,
nutriente para o homem interior. E quanto mais primordial for o material que
eles usam, mais promissores esses costumes são para o futuro.
Notas:
1. Cf. “Archaic Man”
(orig. 1931), CW 10, §§ 143 e ss.
2. Der Braum des Lebens
(Helsinquia, 1922-23), p. 9.
3. Cf. “The Spirit Mercurius”, CW 13, §
247.
4. Cf. “The Philosophical Tree”, Parte I, CW 13.
5. “Archaic Man”, CW 10, §
145.
Extraído de McGuire,
W.; Hull, R. F. C. C. G. Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, s/d.